A renúncia como uma ascética de liberdade

Certa vez, participando de um seminário profissional, ouvi um palestrante argumentar sobre as mudanças necessárias para o sucesso de uma organização usando a seguinte frase: a mudança é uma porta que se abre por dentro.

A princípio a frase de efeito pareceu mais divertir a plateia do que provocar uma reflexão. Entretanto, mesmo depois de tantos anos estas palavras ainda me fazem pensar que a vontade é a grande chave que muda um comportamento e que somos completamente responsáveis por girá-la na fechadura da vida.

Você, leitor, deve se perguntar o que tudo isso tem a ver com a ascética da renúncia, assunto desta matéria. E, pior ainda, como tudo isso combina ou sugere liberdade. O que posso propor é que trilhemos juntos um caminho que responda como o desapego permite que vivamos integralmente o momento presente. Como a renúncia a nossos gostos e convicções pode expandir nossa consciência e favorecer que sejamos mais participativos, mais empáticos, mais tolerantes.

Uma visão romântica e dogmática sobre Cafh, o caminho de desenvolvimento escolhido por nós que fazemos esta revista, pode sugerir que a palavra renúncia pertence apenas à nossa doutrina, de tanto que a usamos, estudamos e almejamos. Ledo engano.

Uma simples busca no imenso universo da internet e nos deparamos com a renúncia em diversos caminhos espirituais. Além do termo jurídico que diz respeito às heranças e, porque não dizer, ao artifício de muitos políticos para evitar uma cassação de mandato.

A renúncia está em toda parte e sua pronúncia constante, em vez de nos deixar mais acostumados e sensíveis a ela, ao contrário, nos ilude e amedronta. Renunciar não é deixar algo ou alguém, desistir de segurar ou de ter posse. Mas ao longo do tempo, o vício de seu uso, com sentido inadequado, nos sugere uma conotação negativa, como um apartheid involuntário.

Vivemos permanentemente nos amarrando às coisas, às pessoas, aos lugares, como se isso estivesse o tempo todo à nossa disposição. E o resultado de imaginar, ainda que remotamente, que podemos perder o objeto de nossa posse nos incomoda.

Ora, se sabemos o mal que este medo impõe, os pensamentos depressivos que provoca, as sensações de angústia que desencadeamos à nossa volta, por que insistimos em ficar colando etiquetas com “é meu” em tudo que nos rodeia ou diz respeito?

Vivemos o tempo todo com medo de perder dinheiro, perder a saúde, perder o amor, perder o emprego, perder a amizade, perder o cabelo, perder a juventude, perder, perder. E nos esquecemos de viver intensamente nossa relação com as pessoas e com todos os aspectos da vida.
Vivemos tão preocupados com o futuro que esquecemos de viver o presente. Vivemos tão preocupados com a velhice que esquecemos de nos preparar hoje para envelhecer de forma sadia. Passamos a maior parte do tempo tão enclausurados em nossos próprios pensamentos que não conseguimos ouvir o outro e, consequentemente, mudar de opinião, abandonar convicções, ter outra perspectiva.

Analisando dessa forma, fica fácil entender que a renúncia é a lei da própria vida, que passa inexorável, cumprindo seu destino independente de nós. O universo amanhece e anoitece todos os dias em detrimento de nossa vontade, independente dos nossos gostos, impávido, cumprindo seu destino.

E nós, o que fazemos? Tentamos aprisionar momentos, pessoas, sabores e tantas outras coisas em vez de estarmos abertos sempre a viver o que nos cabe viver a cada dia, em cada momento único que não voltará jamais. Meu falecido pai já dizia que um homem nunca se banha novamente num mesmo rio. Claro, mesmo que ele volte ao rio conhecido, as águas não serão as mesmas e ele tampouco.

Uma pessoa muito querida repete tanto a frase “vou fazer o que tem de ser feito” que já estou incorporando esta prática. Não adianta remar contra a maré porque isso nos cansa, desgasta. Seguir a corrente é uma atitude inteligente; aceitar aquilo que não tem remédio é conviver com o que a vida estabeleceu; é procurar desfrutar de forma positiva do limão, fazendo uma limonada.

E não tem jeito, se queremos mudar o mundo, temos de começar mudando a nós mesmos. Como dizia o Pequeno Príncipe, “todo dia, depois de me arrumar, eu arrumo o mundo”. Não há exemplo que não contamine todos ao redor, que não faça que alguém, em algum momento, mova sua peça dentro do jogo de xadrez da vida. Porque se não fizermos mudanças voluntárias, elas acontecerão de qualquer forma, em detrimento mesmo da nossa vontade.

Quem já não passou pela situação de querer mudar de emprego, mas fica pensando nas consequências, no medo de ficar desempregado. Daí, de repente, é despedido… Adiantou evitar tomar a decisão?

Quantas vezes relegamos a terceiros a decisão que cabe apenas e tão somente a nós?

Minha sugestão para você que conseguiu chegar até aqui nesta leitura é que comece a enxergar a vida como um grande caminho de renúncia onde a renovação de nossas convicções é urgente. A liberdade que tanto queremos não é sair por aí fazendo tudo que se quer, mas, sim, fazendo tudo que é necessário para que a vida seja tranquila, para que não rememos contra a maré, para que sigamos o curso da vida sentindo seus diferentes sabores. Ora amargo, ora doce, ora ácido, ora sutil…

O silêncio pode ser um ótimo começo. Reflita sobre como reage à vida, perceba se está lendo esta matéria integralmente, com os olhos e com o pensamento, ou se já está se lembrando de fazer o almoço, ou de ligar para aquele cliente, ou se já está com outra coisa na cabeça. Faça o exercício de ver uma situação e distanciar-se dela como se fosse um espectador e veja se encontra novas maneiras de enfrentá-la ou conviver com ela.

Talvez você chegue à conclusão de que pouco pode fazer, a não ser estar disponível em ações e orações, mas esta conclusão deverá ser interior e não imposta pela sociedade.

No silêncio absoluto descobrimos nosso caminho e cumprimos nossas verdadeiras metas como almas e seres humanos.

Uma mensagem escrita pela budista Pema Chodron ensina: “A renúncia é compreender que nossa saudade de ficar em um mundo protegido, limitado e bonitinho é insanidade”. Uma vez que você começa a captar o sentimento de quão grande é o mundo e quão vasto é o nosso potencial para experimentar a vida, então você realmente começa a entender a renúncia.

Quando sentamos em meditação, sentimos nossa respiração assim que ela acontece, e sentimos uma certa vontade de apenas estar abertos ao momento presente. Então, nossas mentes passam a vagar entre todo tipo de histórias, artificialidades e realidades fabricadas, e dizemos a nós mesmos: ‘isso é pensar’. Dizemos isso com muita gentileza e muita precisão.

Toda vez que estamos prontos para deixar de lado a trama, e toda vez que estamos prontos para deixar-nos ir no final da expiração, isso é renúncia fundamental: aprender como abandonar o segurar e manter o ar.

Indo para uma outra doutrina, temos o filósofo e teólogo luterano Albert Schweitzer a dizer que “o herói não é o homem da ação, é o homem da renúncia”.

Já na Tribuna Espírita, o escritor Paulo de Tarso ensina que não é o ato da renúncia que importa. “O que importa é o espírito da renúncia. Você pode ter muitos bens e não ser apegado a eles, desde que se conscientize de que tudo passa, de que tudo nos chega como empréstimo; porque chegará, um dia, em que teremos de abandoná-los. Ninguém é proprietário de nada, a não ser de sua própria consciência.”

Rose de Almeida, jornalista, membro de Cafh desde 1991.

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