Liberdade e renúncia

Henrique Sevilla

A expulsão do Paraíso por ter comido do fruto do conhecimento talvez simbolize o drama que o homem enfrenta desde o momento em que começa a usar as funções de sua mente: a capacidade de escapar do instante em que vive e esquadrinhar o

passado ou imaginar o futuro. Maravilhoso poder, que traz consigo, porém, um dardo envenenado, que pode se cravar para sempre no coração do homem. Para trás e para a frente no tempo, há um momento em que ele acaba, não está… mas o mundo em que estava continuará.

Ele, o homem, é só um instante que passa no eterno devir do universo.

Essa consciência do inexorável destino de sua vida – a morte – será o pano de fundo dos devaneios de sua mente. E, na medida em que vai evoluindo, vai tomando maior consciência de si mesmo. Com o que vai também tomando consciência não só do que é, mas do que deixará de ser… quando morrer.

O drama da sua morte e do que a precede – enfermidade, velhice e declínio – junto com os infortúnios que padece enquanto vive compõem o tema consciente ou inconsciente de filósofos, religiões, caminhos místicos e, também, do homem isolado em seu próprio mundo interior.
Este tema tem sido em todos os tempos o desafio que, se por um lado, tem martirizado, por outro, tem feito o ser humano progredir na busca desesperada por uma saída.

Nietzsche, em sua procura amarga pela verdade, catalogou como mentiras imorais todas as teorias e crenças que pretendiam dar uma resposta a este mistério da vida. Por não ter encontrado um sentido, e assim preencher essa carência, interpretou o recurso à ascética como algo de valor duvidoso.

Para Schopenhauer, viver é sofrer. A vontade, o impulso vital, ignora seus sofrimentos: a vida do homem oscila entre a dor e o tédio. A salvação do homem do sofrimento de existir consistiria em uma atitude radical que o levaria a abandonar o mundo e suas solicitações, liberando-o na medida em que se dirige ao encontro do nada.

O próprio Buda, quando se defronta com a doença, a velhice e a morte, ao sair das paredes de seu palácio, tenta solucionar o dilema da vida, colocando-o como mera ilusão e consequência do desejo. Assim, em última instância, o problema da inevitabilidade da morte se solucionaria pela morte, em vida, dos desejos provenientes dessa mesma vida.

A doutrina judaico-cristã, incluindo o Maometismo, pretendeu solucionar o problema transmutando o sofrimento que a vida proporciona e a própria morte em méritos, como um capital acumulado na vida, que, ao ser purificado na intenção, se transforma em indulgências* para um melhor futuro no além. Além disso, oferece explicação à dor e ao sofrimento humanos, como sendo castigo ou efeito de pecados ancestrais.
Todas as tentativas de explicar os sofrimentos humanos, sua origem na própria vida e as razões que infernizam a peregrinação do homem neste mundo são válidas.

Não se pode dizer que em Cafh este dilema está solucionado, até porque em nosso Caminho o sentir e o pensar de cada um são respeitados como a via que cada indivíduo tem para solucionar, em si próprio, os seus questionamentos interiores. Mas, surge como uma porta que se abre para que, ao atravessá-la, cada qual possa caminhar por seus próprios passos, ir mais além da angústia existencial, gerada pelo mistério da vida e da morte, e pelos paradigmas criados através dos tempos, que se converteram em dogmas.

Essa porta é a lei da Renúncia, ideia central de nosso trabalho em Cafh. Como todas as leis que regem este universo, uma vez descoberta, parece tão obvia e simples, que nem se acredita que, tendo existido sempre, não a tenhamos levado em conta para solucionar nossos ancestrais problemas.

Fazemos uma interpretação dessa lei, o que não quer dizer que seja a única e verdadeira! Certamente haverá muitas outras interpretações possíveis.

Há algo que todos sabemos: tudo nasce, vive e, finalmente, morre. E o morrer se processa pela aniquilação da vida em um processo permanente – nascimento, vida, morte, nascimento, vida, morte…

Como elos de uma corrente eterna, cada ciclo se enlaça com o outro, justamente através de um parto, de um corte, da ruptura do cordão umbilical. A esse passo incessante e perpétuo chamamos “Renúncia”. Assim como a lei da gravidade existia antes de ser formulada: gerações e gerações de maçãs devem ter caído, sem que ninguém se tivesse perguntado por que caíam… Finalmente, um dia, a inquietude de um investigador o fez, abrindo uma porta para que a ciência hoje, usando seus princípios, se desse ao luxo de colocar satélites em órbita.
A experiência de nossos sentidos nos mostra, como foi dito na introdução desta reflexão, que desde o nascimento até a morte nós somos isso: um pequeno lapso de tempo na eternidade infinita.

E aquela possibilidade maravilhosa que a mente nos dá – de lembrar, para trás, e projetar, para a frente, no tempo, cria a ilusão de que podemos “segurar” o passado ou “escapar” para o futuro, estando e sendo nós um presente estático e imutável.
Porém, de fato, nosso pensar sempre se dá no presente contínuo. Como uma corrente interminável, cada instante que passa se une a outro que também passa, em uma sucessão infindável.

Cada elo da corrente universal – seja um instante do tempo ou uma semente (as estações do ano, as civilizações, a vida ou o simples pensamento de um homem) – tudo, absolutamente tudo nasce, cresce e morre neste eterno devenir. E dentro destes processos, ainda outros processos menores seguem sempre fiéis à mesma lei, a lei da Renúncia.

Não se pode deter a vida, nem se pode deter o tempo: inexoravelmente tudo o que existe, existe num presente contínuo. E para subir uma escada é preciso que os pés não fiquem colados a um degrau.

Como ascética, a renúncia é o esforço de desapego do que vai morrendo em nós, para deixar espaço livre ao que vai nascendo.

Na verdade, o que vai morrendo em nós é o que de nós está preso ao tempo. O que está preso ao tempo é nosso ser, ou melhor, o que identificamos como nosso ser. Nossa consciência, no patamar atual de seu processo, está no âmbito do tempo e do espaço, e, neste âmbito, nossa noção de ser é dramaticamente funesta, porque nos identificamos com um ser estático, perecível, enquanto olhamos o universo como algo ilimitado.

A renúncia, como desapego, nos proporciona a liberdade de aceder a um estado de consciência no qual não somos algo estático e imutável: tomamos consciência que somos em processo. Captar a vida e a morte enlaçados a cada instante, não como um final, mas como processo, nos libera: a renúncia é o que é, porém a compreensão que temos dela e o nosso trabalho para identificar-nos com ela proporciona a liberdade, não da morte, nem da vida, porque nós, a cada instante, estamos morrendo e renascendo num novo elo da corrente do eterno processo. Libera-nos de uma noção estática de nós mesmos, perecível, final, para ampliar nossa consciência que está em permanente processo. Nós somos esse processo eterno…

O desapego do que acreditamos ser e do que acreditamos ter nos libera para entrar em fluxo com a eternidade.

Porém, é bom ter clara a diferença entre o “saber” que tudo é devenir e que a renúncia rege nossos passos, e estar num estado de consciência cuja percepção de si mesmo é “em processo”. A tecnologia, a ciência, as crenças, tudo contribui para o desenvolvimento do ser humano. Mas, em última instância, acreditamos que o mais importante desse processo é o desenvolvimento da consciência. Nosso mundo é o mundo… e ele muda à medida que muda o nosso estado de consciência. O fogo é outra coisa, depois que nos queimamos. A água é outra coisa, depois que aplaca a nossa sede.

O mundo e nós mesmos somos outra coisa, após termos entrado no caminho da Ascética da Renúncia. A prática do desapego permanente nos proporciona elementos para ir palmilhando cada etapa do processo do desenvolvimento da consciência, pois dentro dos limites de um estado de consciência espaço–temporal é impossível a liberação.

O estado de consciência decorrente da prática da Ascética da Renúncia nos dá a liberdade e a plenitude de ser em fluxo com os processos da existência.

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