Salvo por Maria

Sérgio Mathias

Manhã luminosa de sábado, o céu azul carioca está lindo, brilhante, límpido, profundo, lavado e enxaguado pela chuva teimosa que finalmente passou.

Lento e expectante – gato caçando rato – o táxi sobe a Jardim Botânico procurando passageiro. Mais à frente, à beira da calçada, o homem jovem segura o pulso direito da menina e, delicadamente, sacode sua mãozinha, ajudando-a, ensinando-a a fazer sinal.

Ao volante, é fácil perceber naqueles dois o bom humor, a ternura paterna e

a meiguice da filha dengosa.

– Poxa, você já sabe chamar táxi! Vai levar seu pai pra onde?
– Pro clube, diz muito inibida, mas louquinha pra se soltar e ficar à vontade e revelar toda a esperteza de seus cinco, no máximo, seis anos de idade.

Seguem os três a maravilhosa viagem, plena de camaradagem, alegria inocente, puro e delicioso exibicionismo dela.

– O nome de uma garota esperta assim deve ser… Raimunda?! Oligária?! Analgésica?! Seguem-se as mais absurdas e divertidas tentativas, sempre seguidas de um prazeroso e enorme NÃO!!!
– A primeira letra é “M”, diz paciente e auxiliadora.
– A segunda é “A”… Maçaneta?! Não!!! Magricela?! Não!!! Malagueta?! Não!!!
– A terceira e “R”… Marmelada?! Não!!!
– Enfim o supremo ato de misericórdia: É Maria!!!
– Que nome lindo! Existe uma porção de músicas feitas com o nome Maria: Maria, o teu nome principia na palma da minha mão…, canta e mostra o “M” na palma da mão.

Ela se mostra encantada com a novidade de ter na mão um belo “M”. Surpresa! O pai também tem um “M” bem grande. O retrovisor revela a veloz e tortuosa aproximação de um motoqueiro. Tem pressa, corre agitado como que fugindo de algo. Avança entre os carros, trilhando o caminho sinalizado pelos riscos de divisão das duas pistas.

Ao passar pelo motorista grita algo que não pode ser entendido, continua célere e, quando alinhado com a frente do táxi, num golpe com o calcanhar, tenta quebrar o farol esquerdo. Não consegue, quase perde o equilíbrio e foge em disparada.

A alegria some, a inocência some, a fraternidade some, a harmonia some… De repente, só resta o silêncio constrangido e apavorado dos agredidos de surpresa.

Agora só cabe o silêncio que se impõe em respeito à inocência e à leveza de espírito de Maria – uma enorme força – que reprime os dois adultos inundados por sentimentos que levariam a reações violentas, não fosse sua angelical presença.

Abalados, mas disfarçando isso, despedem-se com muito carinho. Agora, sozinho, ele continua sua busca por companhia. Segue abalado pela agressão gratuita e pela constatação da fragilidade de sua compaixão. Segue consciente de que ainda reage com sua herança de instintos animais, embora pretenda agir com suas pretensões divinas. Segue em paz, desta vez, salvo por Maria.

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