Ousar, julgar e esquecer

Procurar proceder bem e levar uma vida virtuosa evidencia que desejamos realizar nosso processo de desenvolvimento. Mas não assegura que vençamos o autoengano de crer-nos o centro de tudo, nem que deixemos de voltar repetidamente sobre nossos problemas, sem poder superá-los.

Manter-nos em nosso

processo de desenvolvimento espiritual exige muito mais do que agir corretamente e ter virtudes.

A transcendência que damos a nós mesmos e a importância desmesurada que conferimos a nossas dificuldades mostra que o que mais nos importa é o que acontece conosco, e este egoísmo é uma força contrária à de nossa vocação de desenvolvimento.

A rigidez com que sustentamos nossas opiniões e o hábito de pretender impor nossa vontade aos demais nos fazem tão dogmáticos como quando tínhamos uma interpretação mais estreita da realidade.

Se bem que superficialmente estas atitudes nos deem uma sensação de segurança, na realidade são as que, sem que nos demos conta, fazem-nos sentir que estamos estancados; que nosso desenvolvimento pende de um fio muito fino; sentimos que se afrouxássemos o esforço para controlar-nos, nosso egoísmo prevaleceria, daríamos rédeas largas a nossos impulsos e desejos e perderíamos num instante a amplitude mental e o grau de amor que pudéssemos ter alcançado.

De um lado, o querer que nos anima a persistir na vocação; de outro, o desejo de prevalecer, a resistência a esforçar-nos, a tendência a claudicar diante de impulsos que nos prejudicam, solapam nossa vontade e põem à prova nossa perseverança.

Esta luta entre “quereres” produz um desejo quase desesperado de segurança. Queremos ter a segurança de que não perderemos nada, de que em algum momento vamos poder nos dar os gostos dos quais agora nos privamos; segurança de que, ainda que tenhamos renunciado a algo, poderemos recuperá-lo se mudarmos de ideia. Queremos a segurança de crer que temos privilégios sobre os demais; que embora a perda de bens materiais, a enfermidade, a velhice e a morte aconteçam a outros, seria injusto que acontecessem conosco, pelo menos não agora, não ainda. Especialmente, aferramo-nos à segurança que nos dá crer que sempre estivemos e estamos certos, como se essa ilusão nos permitisse recriar uma história já morta e defender-nos das evidências que põem a descoberto nossas falhas. Pensar o contrário nos aterroriza tanto que não percebemos nosso medo.

Nosso problema é que buscamos segurança onde nunca a iremos encontrar, porque é impossível escapar da incerteza própria da vida. Esta segurança, inalcançável por ser ilusória, consome nossa força interior e nos debilita espiritualmente, o que aparentemente nos dá segurança – a ideia de que podemos possuir algo para sempre e de que estamos certos – é, ao mesmo tempo, a fonte de nosso medo e de nosso infortúnio.

A ânsia de segurança também nos leva a pensar que nosso esforço para atuar bem deve nos garantir um futuro sem sofrimento, e isso nos leva a praticar a virtude. Neste sentido, a prática das virtudes equivale a uma troca: damos algo para receber algo; o sacrifício é o preço que pagamos para obter o prêmio do favor divino. Ainda que não reconheçamos essa atitude interesseira quando efetuamos nosso esforço ascético, nós a evidenciamos ao esperar algo dele. Fazemos a conta de nossas renúncias e dos sacrifícios que fizemos e lamentamos se não recebemos o que acreditamos merecer, quer seja dos outros, da vida ou de Deus. Quando não encontramos os frutos esperados por nossas renúncias, chegamos a perguntar-nos para que renunciar, por que sacrificar-nos e desprender-nos do que temos, se nada “ganhamos” por isso.

O que acontece é que chegamos ao limite a que pode nos conduzir a ascética da autoafirmação, sustentada pela ética de nossas crenças. Esta ascética não tem a força necessária para impulsionar-nos a superar o medo que não nos permite renunciar a nós mesmos, e assim transpor esse limite.

O medo marca os limites de nosso desenvolvimento. A ânsia de segurança não teria poder para vencer nosso bom querer se a víssemos tal qual é: um engano com o qual tratamos de alimentar a fantasia de querer um mundo sem incertezas e com leis que obedeçam a nosso arbítrio.

Temos que dissipar a quimera de pretender que a vida responda a nossos desejos. Em síntese, temos que aprender a enfrentar a lei da vida: ousar viver sem apoios e renunciar.

Não obstante, necessitamos usar certos apoios: princípios, como referências que guiem nossa conduta, postulados para formular uma teoria que nos dê uma visão inteligível da vida. Mas nem o apoio doutrinário pode nos dar a segurança de que estamos certos já que, por um lado, nossas compreensões são incompletas e, por outro, para que uma doutrina não se reduza à letra morta de uma circunstância já inexistente, deve evoluir e responder às novas possibilidades do desenvolvimento humano.

O devenir nos obriga a usar e deixar, a dar sempre um passo a mais para compreender e, baseados nessa compreensão, seguir adiante.

Também necessitamos para nosso adiantamento ético e o da sociedade, assentar a nossa conduta sobre a prática da virtude, não como uma troca para receber recompensas, mas como um parâmetro para atuar retamente.

Viver sem apoios é saber que apoios usar, quando usá-los, como usá-los e quando deixá- los, sabendo que não são mais do que apoios. Pensar e sentir desta maneira nos dá a ousadia de renunciar sem condições, de forma total e definitiva, sem nenhuma reserva, sem olhar para trás.

Renunciar sem condições é renunciar a nós mesmos. Isto produz uma mudança qualitativa em nosso desenvolvimento cujo fruto é, simplesmente, liberdade interior.

Estamos habituados a exercer liberdade para fazer ou conseguir o que desejamos e até mesmo lutamos por ela. Mas não é esta a liberdade a que estamos nos referindo, e sim àquela que se expressa em um juízo equânime.

Conhecemos vários tipos de juízos: os que partem do instinto de conservação, os que resultam de nossas reações emocionais, os originados em nossos gostos e rejeições, os baseados em nossos hábitos, os que se desprendem dos valores que nossa cultura nos transmite.

Estamos condicionados a julgar – de forma inconsciente e automática – como bom o que promove a sobrevivência de nossa espécie e como mau o que vai contra ela. Isto nos leva a evitar situações perigosas para nossa vida e a esquivar-nos do que alguma vez nos prejudicou. Mas também estamos condicionados para responder a impulsos – como os que fazem preponderar o mais forte e o de reproduzir-se a qualquer custo – que, embora possam ser julgados como bons para as espécies em geral, nem sempre são bons para o adiantamento humano.

Estímulos fortes nos fazem reagir emocionalmente e julgar de imediato o que produz nossa reação. Bom é o que nos excita com prazer e mau aquilo que nos produz repulsa.

As coisas belas ou agradáveis são as que nos comprazem; as feias ou desagradáveis as que nos desgostam. Bom é o que está de acordo com os nossos hábitos de comportamento, aparência e gostos particulares de nossa etnia, nosso meio e nosso tempo. Formulamos de forma instantânea e automática juízos negativos sobre o que não se ajusta a esse padrão.

Nossos condicionamentos nos levam a julgamentos de bases subjetivas e o que é mais sério, a atribuirmos a nossas apreciações circunstanciais uma qualidade ou um valor definitivo.

Pressupomos assim que o bom ou mau, belo ou feio, certo ou errado para nós, necessariamente deve sê-lo para os outros, e que essa qualificação é absoluta e permanente. Confundimos o juízo baseado numa opinião (a nossa) com o juízo equânime.

O juízo baseado numa opinião expressa o valor relativo que damos a uma coisa a respeito de outra e é necessariamente temporário; circunscreve-se a um contexto e está sujeito à contraposição de outras opiniões.

O juízo equânime pressupõe a consciência de nossa incerteza básica e nos leva a tomar distância a respeito de nossa maneira de sentir e de pensar. Assim podemos discernir o temporário do permanente, o provável do possível, o particular do geral, os fatos das opiniões, as evidências das crenças…

Para julgar com equanimidade também temos que levar em conta o grande peso que pode ter no presente um juízo feito no passado. E não é fácil vê-lo com clareza. Muitas experiências que recordamos nos chegam acompanhadas de uma grande carga emocional e do juízo que, àquele momento, fizemos delas. Isto faz com que, em muitos casos, nossas recordações sejam coisa julgada e que sentimentos negativos fiquem enraizados em nosso interior. O desgosto ou a dor de um momento se transforma em rancor e ressentimento; o erro em sentimento de fracasso, uma má escolha na convicção de não ter mais oportunidades; uma carência numa ferida que nunca se fecha.

Esta fixação nos ata ao passado subjetivo que fomos construindo e nos impede de compreender as limitações, nossas e as dos outros, aceitar e perdoar, apagar de nossa memória o registro dos agravos recebidos. Em outras palavras, impede-nos de continuar crescendo interiormente e de viver com liberdade hoje.

Chamamos “desapego do passado” à capacidade de produzir este discernimento entre o nosso passado e o juízo que fizemos sobre ele. Isto nos permite experimentar um desenvolvimento correlativo com nossa idade e julgar uma mesma experiência de maneira diferente na infância, na adolescência e na idade madura. Mais saber se expressa em mais equanimidade.

Ao desapegar-nos do passado, deixamos de computar o anedotário de nossa vida, de somar nossos sacrifícios, de medir os esforços feitos, de sentir-nos credores da vida. Assim acabamos com nossa autocompaixão e com ela terminam nossos ressentimentos, nossos rancores e, também, nossos medos. Isto nos permite, por um lado, associar os fatos de nossa vida com suas causas e suas consequências reais; por outro, ver com imparcialidade e lucidez nossas reações diante dos fatos e os efeitos dessas reações em nossa conduta, nossas relações e nossas decisões atuais.

Desapegar-nos do passado é esquecer sem perder a memória: ter um juízo equânime do ocorrido.

Tiramos o selo subjetivo com que interpretamos nosso passado e o incorporamos ao grande contínuo da experiência humana. Recuperamos assim nossa verdadeira história.

Ao esquecer os juízos que fizemos sobre nós mesmos, tornamo-nos livres para viver como escolhemos fazê-lo. Ao esquecer os juízos que fizemos sobre os demais, respeitamos sua liberdade de ser como querem ser. Desta maneira, promovemos a paz e a harmonia ao nosso redor.

Cobrimos com um manto de esquecimento as circunstâncias particulares que experimentamos e mantemos em nossa memória somente as lições aprendidas. Isto nos permite viver cada dia como novo, aumentando sem cessar a nossa capacidade e o nosso saber.

A liberdade interior, que conseguimos pela renúncia a nós mesmos, nos dá flexibilidade mental e capacidade para encontrar novos significados no que consideramos sabido; para aplicar de forma criativa a energia contida em nosso passado, gerando novas vias de desenvolvimento; para transformar nosso conhecimento em sabedoria e transmutar nossas experiências em consciência.

Seria impossível unir uma consciência presa a uma história pessoal, a medos e hábitos alienantes e a ideias ancoradas no passado à consciência cósmica, infinita e eterna.

Só a renúncia a nós mesmos nos abre o caminho para a eternidade, pois a liberdade interior por ela gerada transmuta debilidade e medo em fortaleza intrínseca e uma personalidade contingente em verdadeira individualidade.

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