Reflexões sobre o desapego

Otelmo Eggers

Falar sobre o desapego é um pouco, como se costuma dizer, “chover no molhado”. Referências ao desapego podem ser encontradas nos textos mais antigos da literatura espiritual da humanidade. Nos textos budistas, por exemplo, ele aparece com muita frequência como viraga e indica o completo distanciamento da mente do apego a todos os fenômenos.

No Bhagavad Gita e na literatura derivada do hinduísmo, o desapego é expresso pelo termo sânscrito vairagya e constitui um dos objetivos a ser alcançado pelo devoto.

Contudo, para que possamos compreender o desapego, temos primeiramente que entender por que nos apegamos.

Nas ensinanças de Cafh aprendemos que a nossa personalidade adquirida, nosso ego, é um sistema de condicionamentos automáticos e inconscientes com o qual nos identificamos a ponto de considerá-lo nossa identidade. Esse sistema se forma e se sustenta através de hábitos e impulsos que nos conduzem ao desejo de poder, à aquisição de bens, à necessidade de êxito e de aprovação social.

Lévi-Strauss fala sobre a formação de uma estrutura subjetiva básica que confere a cada pessoa uma matriz, para tentar explicar quem ela é e para que ela serve no mundo, cunhando a expressão “Mito Pessoal” para designá-la.

Correntes recentes na área da psicologia corroboram esses modelos, ao distinguirem vários níveis de vivência de nosso “eu”. O nível mais corrente é denominado “Eu Conceitual”, e constitui, grosso modo, o que pensamos sobre nós mesmos, sendo formado pelos conceitos que cada pessoa vai elaborando a respeito de si mesma. A maioria das pessoas acaba por confundir-se com esse “Eu Conceitual” de um modo muito profundo, ou seja, apega-se ao conceito de quem pensa ser. Quem cai nessa armadilha terá dificuldade de aceitar, ou até mesmo entender, aspectos da sua vivência que não cabem na camisa de força do seu autoconceito, e se dedicará a disfarçar ou negar estes aspectos. A pessoa tenderá a tornar-se rígida, adotando atitudes de defesa, numa tentativa de manter a coerência da sua história (ou mito) pessoal.

Resumindo, poderíamos dizer que a personalidade adquirida não possui uma realidade específica, não passando, em última análise, de uma descrição. No decorrer de nossa vida, apegamo-nos a essa descrição e nos posicionamos em relação a ela como se fosse real, como se fosse nossa única realidade. Passamos a acreditar que somos “isto”, e que o seremos até o fim. À medida que continuamos a dar vigência a essa grande ilusão, não conseguimos ter acesso ao mistério de nossa verdadeira realidade espiritual. Gastamos nossas energias na defesa desse “Eu Conceitual”, nos autoafirmando, cuidando da imagem, nos defendendo, nos preocupando sobre o que dirão os outros a nosso respeito, buscando a aceitação dos demais, nos defendendo das críticas, tentando provar que somos os melhores, e assim por diante.

Para fazer frente ao “Eu Conceitual” e às armadilhas que a adesão inconsciente ao mesmo cria, postulou-se um outro nível de vivência da realidade denominado de “Eu Observador”.

O “Eu Observador” corresponde a uma perspectiva mais transcendente, na qual tomamos consciência de que não somos nem os conceitos que temos sobre nós, nem os conteúdos que vivenciamos, que todos estes são eventos com os quais lidamos, mas que são distintos de nós mesmos. Isso permite que nos reconheçamos como expectadores dos nossos problemas e conflitos. E na medida que deixamos de nos confundir com estes, conseguimos entendê-los melhor.

Essa tomada de distância em relação aos pensamentos e sentimentos aumenta nossa tolerância a eles, permitindo-nos ver suas implicações mais amplas com clareza.

Poderíamos dizer que desapegar-se é relacionar-se com o eu como perspectiva e não como conteúdo. Quando olhamos para a vida a partir do “Eu Observador” nos desapegamos das descrições que tomávamos como sendo de nós mesmos. Damo-nos conta de que não somos o fluxo dos nossos pensamentos, que são meramente conteúdos passageiros, mas a consciência que olha para os mesmos.

Assumir a posição de observador nos permite um contato íntimo com os conteúdos e o fluxo dos momentos da vida, sem nos confundir com estes, capacitando-nos a enxergar o sentido mais amplo dos mesmos. Tornamo-nos capazes de agir de acordo com valores eleitos conscientemente.

Situar-se nesse nível implica viver a vida de forma desapegada, aqui e agora, com aceitação e entrega, sem resistências, apenas deixando que a vida seja.

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