A interdependência como lei universal

A interdependência como lei universal

Imaginem um tempo, um contexto de vida diária, quando não éramos conscientes da gravidade como uma força que influencia todas as nossas ações nesta Terra. Lá, onde costumamos chamar de pré-história, construímos as nossas lanças para caçar, mas não sabíamos que estaríamos criando uma relação vital e em constante processo com esta famosa lei, e sem perceber, com a própria interdependência.

Vieram os Jogos Olímpicos da Era Moderna. O primeiro registro de lançamento de dardo foi em 1886, com a marca de 33,81m. Logo, em 1906, se estabeleceu o primeiro recorde olímpico, com 53,89m. Pulamos para 80,41 metros em 1953, porque alguém resolveu aumentar o tamanho do dardo em 27%. Em 1976, impressionamos os amantes do esporte e da física ao estabelecer a marca de 94,58 metros. Quando passamos dos 100 metros já éramos destros na arte de manejar a Lei da Gravidade. Fomos ao espaço e descobrimos, inclusive, como sobreviver na sua ausência.

A gravidade sempre esteve ali, atuando silenciosamente sobr cada mortal. Levamos milhares de anos para incursionar ao seu alcance e possibilidades, aprendendo e descortinando cálculos elaborados de peso, elipses, supercordas, transposição da força, aerodinâmica e … quantas outras leis fomos descobrindo e nomeando…

A Interdependência não é diferente. É uma Lei. Até onde alcançamos ver por agora, universal. Há uma interrelação entre tudo o que existe, tudo com tudo, todos com todos.

Sendo uma lei, somos nós quem, mais uma vez, deveremos aprender a reconhecê-la, a lidar com ela, a atravessar horizontes para descobrir as suas referências e as suas maravilhas.

Voltando ao cotidiano, cada um de nós lida com as leis que nos cercam, de um modo ou outro. O nosso desafio é desbravar cada novo horizonte que vislumbramos. É buscar significados e formas de viver cada vez mais amplos, em consonância com estas leis universais.

Como viver a interdependência de modo mais consciente? Abordaremos este tema, a partir da perspectiva da nossa experiência. Isto é, a partir de como vamos criando o processo de relação com a Lei de interdependência na Comunidade de Cafh e como alguns exercícios muito simples nos ajudam nesta aventura. Ressaltamos que não são exercícios exclusivos daqueles que optam por este tipo de vida, mas buscar esta consciência da interdependência é um requisito básico para os que o fazem.

Pensar como obediência e dependência podem nos remeter a conflitos épicos entre o indivíduo e a sua vontade, entre alguém que manda e outro que obedece passivo e sem comprometimento. É uma forma de pensar que expressa um tipo de relação. Nada mais longe do que a interdependência vivida em Cafh.

Um dos princípios de Cafh afirma que o ser humano tem o direito básico à liberdade de pensar, agir e decidir sobre a sua própria vida sem a interferência de outros e por isso é capaz de assumir compromissos consigo mesmo, com os demais e com Deus.

E aí começa a guinada da consciência rumo à interdependência. Começa a definir-se uma “autogestão interdependente”. Ou em outras palavras, um modo de ser mais universal, mais egoente, que ao comprometer-se, amplia incessantemente o marco de referência do que até então chamou de sua vida. A responsabilidade e a possibilidade de comprometer-nos fazem-nos agir por consciência, não por medo, nem repressão, coação ou qualquer outra forma de manipulação. É a porta certa e concreta para se ir ao encontro do amor incondicional, mas isso é tema para outro artigo.

Um exercício muito simples, mas de grande impacto, que realizamos nas Comunidades há anos é a avaliação e autoavaliação. Fazemos da seguinte forma. Primeiro escolhemos cinco âmbitos que nos parecem delinear as nossas escolhas e orientação de vida. Logo a seguir, estabelecemos, para cada um dos âmbitos, 2 indicadores, os quais poderão ser observados através de fatos. Por exemplo, escolhemos o âmbito Atitude/Conduta e estabelecemos dois indicadores, tais como: receber uma informação sem justificar-se e aportar soluções aos desafios encontrados. Podemos trocar ou definir novos âmbitos e indicadores de acordo com as necessidades percebidas pelo grupo.

Este exercício nos ensina a nos olhar com os olhos de quem nos vê. A perceber como os demais nos percebem, observando o impacto que as nossas pequenas ações, gestos, palavras de todos os dias têm em suas vidas, que conformam o que chamamos de vida em comum. Estas informações são valiosas para tirar do plano das ideias o ideal de viver e nos levar a ações concretas, criando possibilidades para o ser humano.

Outra prática comum em nossa vida é a de considerar com, ao menos, alguém mais, ou com todo o grupo, as decisões, as formas de pensar, de como diríamos algo etc. Isso poderia ser interpretado como uma submissão, ou que não poderíamos fazer nada sem a interferência de outros. Mas é só uma forma de viver consciente de que cada interação nossa afeta o meio e que a responsabilidade desta consciência nos chama a uma maior reflexão, a viver com menos impulsividade, a uma necessidade de ampliar a perspectiva.

Abraçamos como missão dar as nossas vidas pelo desenvolvimento da humanidade. Mas como é isso na vida diária?

Através de um processo contínuo de compreensão e práticas, mística e ascética, vamos adquirindo consciência de que os nossos pensamentos são forças que gestam paradigmas, os nossos sentimentos plasmam moldes de relações humanas, as nossas ações delineiam o nosso destino. Um destino comum a todos.

“Viver como numa casa de cristal” – não há um pensamento que efetivamente fique oculto ou inócuo. Por isso nos exercitamos, durante muitos anos, em não atuar unilateralmente; a receber o feedback da vida, através do que dizem aqueles que vivem conosco, cessando a luta contínua por prevalecer e ser protagonista e a expressar-nos e conhecer-nos sem máscaras nem defesas. Isto é, vivendo cada momento da vida comum e corrente de todos os dias, com a consciência da grande rede na qual estamos inseridos.

Nas Comunidades temos um marco de referência para internalizar este conceito. Orientam-nos que: “Os Ordenados têm um conceito participativo para avaliar os acertos e os erros; o acerto de um é o acerto do grupo; o erro ou esquecimento de um é assumido por todos. Não é um ou outro quem triunfa ou se equivoca: é o grupo, é a equipe de trabalho, é a Comunidade.”

É difícil enumerar praticas pontuais, desconectadas do conjunto, como se fossem um fim em si mesmas. É certo que demonstramos esta consciência com atitudes e condutas que até podem começar como um exercício, mas que chegam a ser a forma simples de viver de quem se sabe integrado. Algumas atitudes são as que citamos a seguir:

• Comunicar a nossos companheiros onde estamos, qual trabalho estamos executando e qual o impacto que isso poderá trazer nas nossas vidas e no contexto no qual nos manejamos diretamente;

• Receber feedback sem retrucar, com o interesse de ver-se com outros olhos;

• Efetuar reuniões frequentes e diretas, nas quais os desafios dos trabalhos e da convivência são tomados com proatividade e sinergia para encontrar soluções, sem perder de vista nossa missão de gestar possibilidades para todos os seres humanos;

• Prestar contas com a consciência de que nossos atos afetam o conjunto;

• Tomar decisões pautadas nos valores espirituais que abraçamos: participação, inclusão e compaixão; o

• Viver no contexto de uma Observância, que brinda um método de vida, permite coadunar metas, objetivos e esforços em uma mesma direção, em aspectos tão simples como um horário comum, respeito pelos acordos, pontualidade etc.

Um axioma básico de Cafh é fazer em si o que se quer para todos. Para isso precisamos uma consciência interdependente, que é capaz de sair dos moldes rígidos do “eu penso assim, eu sou assado, eu gosto daquilo, não sei fazer o outro.” É preciso uma atitude intrépida de romper esta separatividade, estes muros tão bem construídos que separam o eu e o tu, o meu mundo do mundo que me rodeia.

Paradoxalmente é a obediência, como valor espiritual, como exercício divino, que nos capacita rapidamente para trabalhar em equipe, para deixar de lado o protagonismo, para ser um a mais no grupo, para criar sinergia e empatia, para galgar as dimensões de um amor de amizade indissolúvel, silencioso, permanente. Nasce um vínculo construído em busca de um ideal, de uma missão. O desenvolvimento espiritual como meta do grupo, do ser humano. E de que adianta chegar sozinho? Existe mesmo a possibilidade de chegar sozinho a algum lugar? Existe mesmo a ideia de “sozinho”, de chegar, de ser separado?

A interdependência não é um fim em si mesma, é a lei, é a arena do jogo. Jogamos nela, podemos aprender as suas regras, reinventar-nos a nós mesmos nesta concepção (como reinventaram o dardo para ultrapassar os 100 metros), deixar a consciência ser invadida por sua sempre renovada dimensão.

VIANNA, Jéferson. Membro da Comunidade de Cafh de Campos do Jordão–SP

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