Ousar, Julgar, esquecer

O desejo de prevalecer, a resistência a esforçar-nos, a tendência a claudicar diante de impulsos que nos prejudicam, solapam nossa vontade e põem à prova nossa perseverança.

Esta luta entre quereres produz um desejo quase desesperado de segurança. Queremos ter a segurança de que não perderemos nada de forma definitiva, de que alguma vez vamos poder dar-nos os gostos dos quais agora nos privamos; segurança de que, ainda que tenhamos renunciado a algo, poderemos recuperá-lo se mudarmos de ideia. Queremos a segurança de crer que temos privilégios sobre os demais; que embora a perda de bens materiais, a enfermidade, a velhice e a morte aconteçam a outros, seria injusto que acontecessem conosco, pelo menos não agora, não ainda. Especialmente, aferramo-nos à segurança que nos dá crer que sempre estivemos e estamos certos, como se essa ilusão nos permitisse recriar uma história já morta e defender-nos das evidências que põem a descoberto nossas falhas. Pensar o contrário nos aterroriza tanto que não percebemos nosso medo.

Nosso problema é que buscamos segurança onde nunca a iremos encontrar, fugindo de um medo que se agiganta nessa fuga. Porque é impossível escapar da incerteza própria da vida.

O medo marca os limites de nosso desenvolvimento. A ânsia de segurança não teria poder para vencer nosso bom querer se a víssemos tal qual é: um engano com o qual tratamos de alimentar a fantasia de querer um mundo sem incertezas e com leis que obedeçam a nosso arbítrio.

Temos que reconhecer nosso medo, olhar de frente nossa busca de uma segurança ilusória, dissipar a quimera de pretender que a vida responda a nossos desejos. Em síntese, temos que aprender a enfrentar a lei da vida: ousar viver sem apoios e renunciar.

Viver sem apoios é saber que apoios usar, quando usá-los, como usá-los e quando deixá-los. E, sobretudo, é não esquecer que não são mais do que apoios. Pensar e sentir desta maneira nos dá a ousadia de renunciar sem condições, de forma total e definitiva, sem nenhuma reserva, sem olhar para trás.

Renunciar sem condições é renunciar a nós mesmos. Isto produz uma mudança qualitativa em nosso desenvolvimento. O fruto desta renúncia é, simplesmente, liberdade interior. A liberdade interior se expressa especialmente em um juízo equânime.

Os valores que recebemos e nossas próprias referências nos dizem o que teríamos que considerar bom ou mau, belo ou feio, atraente ou repulsivo e julgamos de acordo com eles de forma automática.

Na realidade, quando atuamos sob estes condicionamentos estamos julgando sobre bases subjetivas. E, o que é mais sério, estamos atribuindo a nossas apreciações circunstanciais uma qualidade ou um valor definitivo. Com isto pressupomos que o que é bom ou mau, belo ou feio, certo ou errado para nós, necessariamente deve sê-lo para os outros, e que essa qualificação é absoluta e permanente. Esta confusão nos faz esquecer a diferença entre o juízo baseado numa opinião e o juízo equânime. O juízo baseado numa opinião expressa o valor relativo que damos a uma coisa a respeito de outra e é necessariamente temporário; circunscreve-se a um contexto e está sujeito à contraposição de outras opiniões.

O juízo equânime pressupõe a consciência de nossa incerteza básica e nos leva a tomar distância a respeito de nossa maneira de sentir e de pensar. Assim podemos discernir o temporário do permanente, o provável do possível, o particular do geral, os fatos das opiniões, as evidências das crenças, os juízos de opinião dos juízos equânimes.

Desapegar-nos do passado é esquecer sem perder a memória: ter um juízo equânime do ocorrido. Tiramos o selo subjetivo com que interpretamos nosso passado e o incorporamos ao grande contínuo da experiência humana. Recuperamos assim nossa verdadeira história.

Ao esquecer os juízos que fizemos sobre nós mesmos, somos livres para viver como escolhamos viver. Ao esquecer os juízos que fizemos sobre os demais respeitamos sua liberdade de ser como eles querem ser. Desta maneira, promovemos a harmonia e a paz em nós e nos demais.

No juízo equânime e no esquecimento consequente de nosso passado reside nossa força e nossa visão. Cobrimos com um manto de esquecimento as circunstâncias particulares que experimentamos e mantemos em nossa memória as lições aprendidas. Isto nos permite viver cada dia como novo, aumentando sem cessar nossa capacidade e nosso saber.

A liberdade interior que conseguimos pela renúncia a nós mesmos nos dá flexibilidade mental e capacidade para encontrar novos significados no que consideramos sabido; para aplicar de forma criativa a energia contida em nosso passado, gerando novas vias de desenvolvimento; para transformar nosso conhecimento em sabedoria e transmutar nossas experiências em consciência.

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