Posse e responsabilidade

Gostaria de compartilhar uma reflexão que venho desenvolvendo sobre a relação que existe entre posse e responsabilidade.

Pode-se dizer que há uma diferença importante entre a responsabilidade que é determinada pela posse ou a não posse de um objeto.

A responsabilidade sobre o que se tem, ou se possui, tem um preço que corresponde ao valor que pagamos por possuir o objeto que nos pertence.

Já a responsabilidade sobre algo que não é nosso tem um preço que corresponde aos valores morais que nos levaram assumir a responsabilidade pelo objeto.

Vejamos um exemplo: a minha responsabilidade com o carro que é meu é diferente da que assumo com um carro que me é emprestado. Com o carro que é meu posso fazer o que bem quiser. O preço por ser irresponsável em seu cuidado é o preço pago por ele. Com um carro que meu amigo me empresta, tenho a responsabilidade que assumo por sua amizade e confiança, logicamente, incluindo o valor que foi pago pelo carro.

Porém, o mais importante é o valor que atribuo à sua confiança, à amizade, a valores imponderáveis.

Podemos entender que, quanto maior for o nível de consciência de alguém, maior será a distância entre os valores de responsabilidade e os de posse.

Uma responsabilidade que se mede com base em valores monetários, tem a dimensão desses valores; a responsabilidade, cuja dimensão é estabelecida por valores morais, praticamente, não tem limites.

Tem medida, mas não, limite.

Eis aqui uma história que pretende ilustrar, de outra forma, esta diferença.

Acordei mais cedo. Estava impaciente por contar meu sonho. Finalmente, Maria terminou de colocar todas aquelas coisas de que gosto para o café … e então, apoiando o seu rosto no queixo para expressar sua atenção, fez silêncio para me escutar, como faz, habitualmente, sempre que preciso. Então comecei a contar o meu sonho.

“Sonhei… bem, não sei se foi um sonho… era tão vívido, tão impactante!!!

Alguém chegou a nossa casa… sim… acho que era nossa casa. Pegou a minha mão – eu sentia a sua mão na minha – e me levou pelo jardim. Era belíssimo, tinha umas flores iguais às que você cultiva, mas não era o nosso jardim. Bem, não sei, era e não era…

Ali, ele me deu 5 notas de 10 reais e duas de 5. Colocou-as na minha mão e disse para eu usar muito bem, porque era o fruto da vida de alguém que me amava.

Fiquei encabulado, porém sabia que não poderia recusar.

Ele me disse que devia pôr gasolina no carro com esse dinheiro. Nisso me chamou a atenção que havia um anel com a pedra virada para baixo, na mão com que me dava o dinheiro. Eu também fazia isto com o meu anel para evitar que alguém, na rua ao vê-lo, tentasse me assaltar. Não podia ver o seu rosto devido à luz intensa que o banhava ou que dele irradiava. O caso é que entrei no carro, um VW preto e vi que no banco do acompanhante, havia uma criança cujo rosto também não podia ver.

A criança usava uma calça azul com um desenho de “superman” no bolso. Então o homem que me deu as notas entregou-me a chave do carro, dizendo que estava me emprestando o veículo para eu levar a criança a uma reunião. Disse-me que o menino sob os meus cuidados era o Dalai Lama e teria de chegar são e salvo a essa reunião.

Fiquei preocupadíssimo e apavorado com tamanha responsabilidade. E acrescentou que eu deveria tomar cuidado no caminho, porque iriam querer sequestrar o menino, o que me apavorou ainda mais.

Começamos a rodar pela cidade, mas eu sabia que se fosse depressa demais poderia bater e, se fosse muito devagar, chegaríamos tarde à reunião.

O menino começou a falar: No início não o entendia, mas, depois, eu disse para mim mesmo que, se ele era o Dalai Lama, deveria estar dizendo algo muito importante e eu deveria tentar entendê-lo.

Assim o fiz e comecei a amá-lo profundamente.

Alguns minutos depois, chegamos à entrada de um túnel e o menino pediu para parar o carro e desceu. Eu não sabia o que devia fazer, mas sabia que devia protegê-lo. Saltei do carro e trouxe-o novamente para o banco, ao meu lado.

Bem, tenho a sensação de ter sonhado muito mais, entretanto não consigo lembrar o quê…

Acenei para minha Maria e saí de casa. Peguei o meu carro e parti para a labuta do dia. Como era de costume, levava o meu garoto para deixá-lo à porta da escola e depois prosseguia para o meu trabalho.

Parei no posto para colocar gasolina no carro. Aí, quando estava pagando ao frentista, reparei que o estava fazendo com 5 notas de 10 reais e duas de 5 reais. No meu dedo brilhou a pedra do anel, virada para dentro da minha mão. E no retrovisor externo pude ver nitidamente a minha imagem, que o reflexo do sol, por um momento, ofuscou.

Então, devagar fui virando o rosto e reparei que havia um menino junto de mim. Ele estava falando algo, evidentemente, dirigido a mim, vestia uma calça azul com um desenho de “superman” no bolso. Comecei a escutá-lo.

De verdade, não era meu filho, era um menino com um destino luminoso pela frente. Dei-me conta que estávamos, não no meu carro, mas em um carro que me emprestaram para usar. E botei gasolina com o dinheiro que me deram, em troca de algumas horas de minha vida.

A luminosidade de manhã se fez mais nítida, mais brilhante. Todos os rostos pareciam sorrir. Algo de muito importante e transcendente se passara na minha vida: o carro, o garoto a meu lado, as notas de 10 e de 5, a imagem no retrovisor, nada era meu, mas por tudo isso eu era responsável. Categoricamente responsável.

A luz parecia arrancar centelhas do carro que nos transportava. O garoto a meu lado era muito bonito, muito inteligente e dizia algo muito importante. A imagem no retrovisor e as notas nessa mão… tudo, tudo pedia de mim uma resposta pra essa responsabilidade que eu desconhecia.

E esta responsabilidade foi tomando o lugar daquela coisa tola e suja que fazia o mundo opaco… o carro VW preto, meu carro, o garoto, meu filho, as mãos, minhas mãos, o dinheiro que eu ganhei… a imagem no retrovisor… minha imagem.

Pela última vez, sacudi de mim o sentimento de posse, o “meu” caiu fora do carro… no asfalto cinza do caminho. E o carro ficou luminoso, o menino ficou luminoso, a estrada ficou luminosa, e o mundo se iluminou.

Este mundo pelo qual, daí em diante, eu seria “responsável”.

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