Místico, poeta, mestre e protetor espiritual que iluminou, com sua própria vida, a trajetória do ser humano em busca do divino.
É São João da Cruz que nos diz: “considera que Deus só reina numa alma pacífica e desinteressada.” (Ditos de luz e de amor, Obras Completas, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p.99)
Místico, poeta, teólogo, doutor da igreja, o mestre espiritual espanhol, São João da Cruz, João de Yepes Y Alvarez, é identificado como um “iogue por excelência”, na índia, um modelo a ser seguido pelos ocidentais que querem ser iniciados nos mistérios do caminho de desenvolvimento interior.
A vida de São João da Cruz é marcada pelo sofrimento, miséria, pobreza, dor, iluminação. Nascido na Espanha, em uma família pobre, viveu muitas privações e dificuldades. Órfão de pai, após alguns meses de seu nascimento, a sua infância foi difícil, com muitas privações, falta de trabalho.
Admitido, aos 9 anos, no colégio da Doutrina, uma instituição caritativa mantida por eclesiásticos, trabalhou como enfermeiro, carpinteiro, alfaiate, pintor, entalhador. Por não mostrar grandes habilidades para a realização destas tarefas, o diretor do instituto, um pouco desapontado, tenta ajudá-lo, oferecendo-lhe a oportunidade de ser coroinha, no convento de Madalena.
Foi uma surpresa. Parece que João nascera para esta função, revelado grande inteligência, habilidade e dedicação no cumprimento dos serviços prestados à igreja.
A pobreza, as humilhações e os sofrimentos não deixaram feridas, frustrações ou revolta em sua alma. Ao contrário, contribuíram para despertar e fortalecer a sua vocação de amor e renúncia.
Sereno, silencioso, João da Cruz desenvolveu em si uma atitude de sacrifício, abnegação, reflexão e oferenda. Talvez, a experiência das privações tenha lhe ensinado o valor do sofrimento, preparando-o para viver, com disciplina, uma árdua ascese em busca do divino, da mais elevada contemplação.
João trilhou o caminho da penitência, mortificação, trabalho, oração para submeter seus desejos pessoais, os movimentos do seu ser que o afastavam do divino, da possibilidade de ser livre.
Ainda jovem pedia esmolas nas ruas para ajudar os doentes e ao mesmo tempo praticar uma ascese de amor. Sofria as humilhações e todas as adversidades da vida com aceitação e serenidade e tudo o que diz foi resultado de sua experiência pessoal.
Em 1563, recebe o hábito religioso dos Carmelitas, com o nome de Frei João de São Mathias e em 1567 ordena-se sacerdote, cumprindo com esmero, recolhimento e seriedade todas as observâncias do convento. Com determinação escolhe viver a renúncia a si mesmo para permanecer na presença de Deus com o coração pleno de amor, em silêncio e oração constante.
A necessidade cada vez maior de contemplação e entrega ao mistério divino faz com que se torne mais forte e mais pleno, no mundo de Deus, porém sente-se sozinho, marginalizado, diferente dos outros, no mosteiro onde vive. Quer viver uma ascese mais dura, uma vida de pobreza absoluta.
Neste momento de angústia, encontra Madre Teresa, que com os seus 52 anos, vive a plenitude espiritual e trabalha no projeto de fundação das Carmelitas Descalças, segundo os princípios da Ordem primitiva dos eremitas do Monte Carmelo, a pobreza total, o silêncio e a solidão. Frei João se identifica com o projeto de Madre Teresa, por expressar o seu anseio de simplicidade e o seu ideal evangélico de viver como os eremitas, os primeiros Carmelitas.
Fundam a ordem dos Carmelitas Descalços e Frei João é o primeiro a vestir o hábito branco que marca a renúncia à posse para assumir a pobreza como a condição para criar em si um estado de oração, de liberdade interior e de amor incondicional.
Homem de oração, Frei João compreendera que para unir-se a Deus deveria trilhar o caminho do controle de si mesmo, contrariando, portanto os seus impulsos, reações e tendências inconscientes. Deveria orientar a sua vida, suas ações, pensamentos e sentimentos a partir da força de redenção do amor a Deus, conforme as palavras de São João da Cruz, nos versos a seguir.
“Para chegares a saborear tudo
não queiras ter gosto em coisa alguma
Para chegares a possuir tudo
não queiras possuir coisa alguma
Para chegares a ser tudo
não queiras ser coisa alguma
Para chegares a saber tudo
não queiras saber coisa alguma
Para chegares ao que não gostas
hás de ir por onde não gostas
Para chegares ao não sabes
hás de ir por onde não sabes
Para vires ao que não possuis
hás de ir por onde não possuis
Para chegares ao que não és
hás de ir por onde não és”
(Obras completas, p. 182)
Vivendo segundo estes princípios, os Carmelitas Descalços atraíam a atenção e a reverência de muitos jovens, despertando neles a vocação religiosa. Mas despertou também a inveja, a raiva, a incompreensão dos Carmelitas Calçados, uma ordem que não seguia os princípios da pobreza e silêncio absolutos. Irados, os Carmelitas Calçados encarceram São João da Cruz no Convento de Toledo, submetendo-o ao flagelo, humilhação e privações. João suporta tudo com resignação.
É nesta prisão escura, dia e noite, que João inicia-se como escritor e poeta. Relata a usa experiência em busca do divino, uma trajetória de angústia, dor, amor, coragem para atravessar as noites escuras e os vazios humanos.
Sua experiência, certamente, iluminou a vida de muitos seres, motivando-os a iniciar a sua peregrinação rumo ao infinito.
São João, o primeiro Carmelita Descalço, teve uma vida breve, 49 anos de renúncia, oferenda, praticando uma ascese árdua e radical consigo mesmo, mas muito compassivo com as outras pessoas.
Exigia muito de si para alcançar o mais alto estado de perfeição, mas sentia uma grande desolação, dor diante da maldade ou ignorância humana.
Sabia agradecer às pessoas que o maltratavam como os carcereiros ou aqueles que o prenderam, por ter consciência que a maldade humana pode ser um instrumento de purificação, redenção. O sofrimento pode ser um meio de liberação pra o ser que se entrega nas mãos do divino, por amor à humanidade, conforme nos fala São João, nestes versos:
“Faz obra tal o amor depois que o conheci, que se há bem ou mal em mim, tudo faz de um só sabor, e à alma transforma em si;
E assim sua chama saborosa, a qual em mim estou sentindo, pressa sem restar coisa, todo me vou consumindo.”
(Obras completas – Glosa 11 – p. 56)
Esta entrega e fé no divino se confirma nos versos:
“Por toda a formosura nunca eu me perderei, mas sim por um não sei quê que se alcança porventura. (…) o coração generosos nunca cuida de parar por onde é fácil passar, mas no mais dificultoso, nada lhe causa fartura, e sobe tanto sua fé que gosta de um não sei quê, que se acha porventura.”
O anseio de união divina faz de São João um mestre, um protetor que guia, ampara e protege a todos os que se lançam em busca do mistério divino de união substancial, o encontro de um “não sei quê que se acha por ventura.”
Referência bibliográfica:
- São João da Cruz, Obras Completas, organização do Frei Patrício Sciadini, Editora Vozes, Petrópolis, 2002.
- Itinerário Espiritual de São João da Cruz, Místico e Doutor da Igreja, Berardino, Pedro Paulo di, São Paulo; paulus, 1993.
Marilda Clareth, Professora