A relação com as ideias

Trabalhar sobre as relações é a maneira de responder ao deságio de nossa ignorância sobre as mais antigas e permanentes questões: O que somos? De onde viemos? Para onde vamos?

Todo esforço para responder com palavras a essas questões choca-se violentamente com a limitação do cérebro humano. As relações, ao contrário, nos conectam com todos os aspectos da realidade, inclusive com aqueles que não compreendemos, e marcam vias pelas quais é possível expandir a consciência.

O trabalho sobre as relações requer que tenhamos a ousadia de renunciar às ideias formadas sobre o que somos, o que sabemos e o que queremos na vida, e que nos apoiemos, por um lado, sobre a tarefa de nos relacionarmos e forma harmônica e consciente com uma área cada vez maior da realidade. E, por outro, sobre a fé em que, já que participamos da totalidade da existência, as respostas finais estão em nós mesmos. A experiência daqueles que remontaram ao curso deste maravilhoso caminho interior mostra-nos que isso é possível.

Usamos a palavra “alma” para nos referirmos ao que temos em comum como seres humanos, sem considerar as diferenças que implicariam falar do “homem”. Desejamos que ao ler a palavra “Deus” cada um lhe dê a maior amplitude possível, sem limitá-la a definições positivas ou negativas. “Deus” e a expressão “o Divino” designam a mais alta possibilidade do ser humano e, como tal, o ponto para o qual se orienta o desenvolvimento de nossa consciência. Independentemente de nossas crenças filosóficas ou religiosas, o conceito do “Divino” representa o aspecto desconhecido da vida e do mundo que, como poderoso ímã, impulsiona nosso avanço no conhecimento de nós mesmo e da realidade.

As relações são a trama da vida; desenvolvê-las de forma consciente e metódica é aprender a amar através de um trabalho que inclui todos os aspectos da vida e que transforma o viver em arte. Vida espiritual e arte de viver são, então, duas maneiras de se referir a uma mesma coisa. No entanto, o termo “vida espiritual” é geralmente mais associado a uma crença do que ao fato de viver, sem levar em conta que a vida de cada ser não é isolada, que vivemos em relação, não só com outras pessoas e com o meio, mas em relação com o mundo, o tempo e o mistério de não saber quem somos, de onde viemos e para onde vamos. E, especialmente, que vivemos em relação como princípio fundamental do Universo que chamamos “o Divino” ou “Deus”.

O estudo da história e das ciências é fundamental para compreender o que acontece. A visão da vida se completa quando se integra ao conhecimento vigente. Tais ideias são mais puras do que as geradas pelo ser em seu estado de consciência habitual; elas o estimulam a participar e a se desenvolver. A relação que se estabelece com o panorama conceitual que se adota para compreender a vida e a sociedade segue certas diretrizes que, a grosso modo, indicam o grau de adiantamento que cada qual pode alcançar através de suas experiências.

Nesse processo podem-se distinguir três tipos de relação: a relação emocional, a relação dogmático-argumentativa e a relação de silêncio-experimentação. Estas três relações geralmente coexistem em cada ser humano.

Na relação emocional nos comovemos com as ideias e os conceitos que acreditamos serem certos, mas não os praticamos. Imaginamos estar vivendo as ideias porque nos emocionamos quando as recebemos e acreditamos nos conceitos. Como não distinguimos se existem contradições entre as ideias que sentimos como verdadeiras e nossa maneira de viver, interpretamos nossas experiências de acordo com os nossos desejos e conveniências e sempre encontramos argumentos para justificar a nossa conduta. Por um lado defendemos tenazmente nossa crença e por outro, podemos chegar a negá-la com nossas ações até o ponto de esquecer seus preceitos como, por exemplo, amar ao próximo, perdoar e não matar, dando justificativas para o ódio e a vingança.

Na relação emocional, as reações de atração e de repulsa influem poderosamente na interpretação das experiências e das ideias. É muito comum generalizar-se uma opinião que se baseia unicamente no que nos atrai ou nos desagrada, qualificando alguma coisa como boa ou má de acordo com nossas preferências. Por outro lado, como a atração e a repulsa provêm em grande parte dos hábitos de vida e da formação recebida, a relação emocional como as ideias também é dogmática.

A relação dogmática com as ideias reduz a visão de vida a um único ponto de vista. Pensa-se que as próprias crenças são a única verdade, não se aceita outra verdade e tende-se a projetar o mal da sociedade sobre aqueles que opinam de forma diferente, pensando que são os causadores dos problemas que sofremos. Essa atitude induz à separatividade e à hostilidade. A relação dogmática com as ideias cria confrontos que não produzem grande esclarecimento. Como cada um está convencido de sua própria opinião, não busca a verdade mas, sim, demonstrar o erro dos que não estão de acordo. Fala-se aqui de confrontos hostis, e não de discussões que produzem intercâmbio intelectual com a consequente aproximação entre pontos de vista diferentes.

A relação argumentativa com as ideias é outro aspecto do dogmatismo e leva a julgar toda informação que se recebe, tomando como padrão as ideias estabelecidas que tenhamos adotado sem tê-las analisado. Se os novos conhecimentos coincidem com essas ideias nós os aceitamos sem criticar, se não, eles são questionados e rejeitados. As crenças dogmáticas são como um prisma através do qual se interpreta a vida. Toda informação é filtrada pelo sistema de crenças e passa a confirmar nossa própria visão da realidade, afiançando-nos a segurança de estarmos agindo acertadamente. Enquanto se mantém essa atitude, rejeita-se sistematicamente tudo o que não está de acordo com nossas ideias formadas e perde-se a possibilidade de ampliar nossa própria maneira de pensar. Uma visão diferente da nossa não implica necessariamente uma opinião equivocada, mas outra forma de enfocar a questão. É bom comparar nossas opiniões com outras, sem discutir nem condenar aquelas que são diferentes, para entender melhor nossa própria posição e as posições de outros pontos de vista.

O terceiro tipo de relação com novos pontos de vista é a de silêncio-experimentação. O ser humano abre-se a conceitos novos, a pontos de vista diferentes. Sua relação com as ideias não é nem concordância nem de rejeição; se assim fosse, ela seria reduzida à crítica de seu conteúdo segundo as ideias que ele já tem e não aprenderia nada de novo. Não é necessário “crer” em novos pontos de vista, novas concepções, novas possibilidades que as experiências pessoais e coletivas detonam, porém deve-se considerá-los e estudá-los.

Os ensinamentos que a experiência encerra dão bons frutos quando se tem uma atitude investigadora aberta e livre de preconceitos. Esta atitude ensina a escutar e abre um panorama para além dos dogmas. Escutar e informar-se sem julgamentos prévios é um meio excelente de ampliar a compreensão e de se renovar interiormente. Quando se descobre uma ideia que se considera útil, deve-se buscar a maneira de aplicá-la à vida diária para que ela não se dilua numa compreensão passageira.

Por mais simples que uma compreensão seja, requer um método de trabalho interior para ser incorporada à vida. Praticar durante certo tempo o que se aprende da vida concede-nos uma rica experiência. Mas, fazer dessa compreensão uma forma de ser, requer que se mantenha uma atitude de observação, experimentação e fidelidade. Se se persevera neste esforço, vai-se adquirido sabedoria. A atitude de observação permite compreender os processos interiores sem deformá-los com interpretações subjetivas. Dessa maneira, pode-se distinguir o que se deve mudar ou melhorar e quais conceitos devem ser aplicados em cada caso para transformar essa compreensão numa conquista permanente.

Não há soluções prontas para os desafios da vida, nem receitas preparadas para aplicar em cada momento do desenvolvimento humano. Os conceitos fundamentais da vida espiritual devem ser experimentados por cada um, de acordo com as circunstâncias e com suas características individuais.

Experimentar é, em primeiro lugar, discernir que conceitos ou pontos de vista são necessários explorar para se expandir o próprio horizonte; em segundo, escolher a maneira de aplicar os conceitos; em terceiro, avaliar os resultados obtidos e, finalmente, ir retificando a ação para se alcançar o melhor fruto possível. A atitude de abertura protege da tendência a julgar o resultado dos esforços como triunfos ou fracassos. Um efeito indesejável não é um fracasso, mas um novo conhecimento que, se for bem aplicado, evita que se cometam sucessivos erros.

Para que as ideias e as experiências nos ensinem realmente, deve-se estar disposto a expandir permanentemente nosso ponto de vista. Nem todos os pontos de vista são igualmente válidos, já que uma opinião desinteressada é mais ampla do que outra, egoísta. Para distinguir umas das outras é preciso universalizar a maneira de pensar e aprender a resolver as diferenças através de interpretações cada vez mais amplas.

A ensinança de vida se incorpora passa a passo quando se mantém uma atitude aberta e receptiva. Quem quer cultivar a arte de viver não vive à espera de uma grande ensinança, já que a vida é um livro aberto que, quando o sabemos ler, concede-nos o que necessitamos para compreender nossas experiências e entender-nos a nós mesmos.

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