As místicas da Água Pura – África

As místicas da Água Pura – África

A humanidade vem ao mundo na África. Ao menos é o que explica a arqueologia, a antropologia, a paleontologia e mais recentemente a genética (FAGAN, b. e DURRANI, N., 2019). Sabemos que há outras explicações e não queremos desprezá-las, mas neste estudo buscaremos uma explicação que dialogue com a ciência contemporânea.

A humanidade apareceu em um ambiente cercado por abundantes vales fluviais, com fontes contínuas de água pura e natural. Dessa relação com as águas, construída a partir dos nichos ecológicos dos pré-humanos, constituíram-se os seres humanos. Ou seja, as condições já estavam dadas. Os seres apenas foram, aos poucos, acordando e se conscientizando do seu entorno: uma mística emergente a partir do próprio silêncio da mente, que aos poucos despertava.

Don Santiago Bovisio já dizia que o politeísmo próprio dos africanos é o caminho de conhecimento harmônico de todas as coisas materiais e espirituais, e seu efeito é a sabedoria (BOVISIO, 2022a). Em outro estudo, Bovisio afirmou que a crença na vida após a morte, em ancestrais que visitavam periodicamente os vivos, influenciando em suas vidas, permite que a relação com a divindade e o ambiente astral jamais cesse (BOVISIO. 2022b).

Interpretamos que esta afirmação combina bem com aquela, segundo a qual a vida em sociedade e o despertar da mente aconteceram diante das relações com o ambiente, que já existia antes desse despertar. Os Deuses estavam ali, juntos, vizinhos mesmo. A mística africana permite uma convivência contínua entre a vida e a espiritualidade, assim como era a convivência desses humanos com seu ambiente de emergência para uma consciência humana.

O entorno da Mãe Natureza era a fonte das condições de surgimento e existência do ser humano. Essas relações espontâneas dos seres humanos com o ambiente, tão favorável ao seu desenvolvimento, revelam que os seres e seu entorno tinham a mesma natureza, e que o contato com o divino era direto. E essa é a mística presente nas religiões africanas. Os deuses, ou Deus – pois muitas culturas africanas são monoteístas –, são considerados seres de relação cotidiana, presentes junto com toda a relação dos ancestrais (COSTA E SILVA, 2001). Pelo que podemos interpretar, esta humanidade nascente, vizinha das origens e do ambiente berço, simplificava a relação com a natureza, com o divino, tratando o universo das relações divinas como sendo tão presente como todas as outras condições da natureza com as quais conviviam.

Parece-nos que essa visão mística, possivelmente original dos seres humanos – que na África acabavam de sair do silêncio pré-humano –, tendia a ver o entorno e a natureza como os companheiros da existência, assim como os ancestrais e os próprios deuses. São místicas de povos da floresta, ou das savanas, que entendiam as condições que viviam como parte de um todo, assim como deles mesmos, como se revela nos estudos das cosmologias africanas (OLIVEIRA, 2006).

A relação dos seres humanos com a água parece representar o conjunto das relações destes com a natureza. Em terras onde a água pura da fonte natural é parte da relação de origem do próprio ser humano, a mística se relaciona com ela desta mesma forma: pura.

Seja Iemanjá, seja Oxum (SANTOS, 2006), as divindades africanas da água nos revelam a situação de relação natural, de trato cotidiano e de interação continuada entre os seres humanos e as divindades. A água pura abundante da maior parte dos ambientes africanos nos apresenta o caminho para perceber a mística africana. Pessoas, ancestrais e divindades são considerados próximos e presentes no mundo uns dos outros. Como parece ser com a mística ali presente, as águas da África são caudalosas, limpas, fontes da vida, desde a mais tênue consciência humana, como também contato direto com as divindades a ela associadas. Os seres humanos interagem e vivem com a água na medida de seu cotidiano: o Nilo, o Congo, o Zambeze, o Níger… rios maravilhosos, fontes ancestrais e companheiras do despertar humano.

É assim que pensamos que os primeiros caminhos místicos dotados de compromisso interior, votos de comprometimento, foram construídos a partir da ideia de que as divindades e as energias advindas do divino estavam presentes em uma natureza abundante, companheira e vizinha das comunidades humanas. A mística espontânea dessas sociedades africanas – as sociedades que surgiram com a própria humanidade – é uma mística que admite serem os deuses e os mistérios divinos parte corriqueira do dia a dia dos humanos. As pessoas tinham contato direto com o mundo místico e as sociedades se consideravam presentes nas organizações do universo divino.

O estudo das mitologias e construções religiosas africanas mostram que a mística presente considera os deuses e os seres humanos capazes de relacionarem-se de igual para igual, de se encontrarem na rua, nas festividades, compartilhando dificuldades e soluções. Eles não são capazes de ter apenas relações pessoais; de fato, estas relações devem se ajustar à vida cotidiana.

Essa construção de místicas relacionadas com as forças da natureza, que interpretam o ser humano como parte do próprio contexto divino – e, de fato, veem os ambientes naturais e as ecologias da Terra como extensões do mundo existente nos planos divinos –, nos parece ser o caminho para entendermos a construção e as relação místicas originais da humanidade. E isso se relaciona com a presença próxima do ambiente natural e de seus mistérios. São as místicas que interpretamos mais telúricas, enraizadas na simplicidade necessária da simples relação direta e de vizinhança do humano com as forças do cosmos que se colocam ali, lado a lado, pertencentes às práticas da vida.

Não há qualquer tentativa de identificar estas relações como primitivas ou inferiores, que evoluíram para caminhos mais complexos. A perspectiva africana continua válida e representa uma gama de possibilidades de trabalho místico compromissado. Na verdade, são tão válidas como sempre foram, e para a humanidade vale estudá-las, compreendê-las e participar delas.

As ordens místicas africanas, aquelas que consideram divindades ancestrais e humanos parte de uma mesma interação cotidiana, continuam presentes e cumprindo seu papel ante o conjunto das místicas da humanidade.

(AFRIKAN AMÉRICAN HISTORY, 2022)
AFRIKAN AMERICAN HISTORY. West and central african religious practices generally manifest themselves in communal ceremonies.
AFRIKAN AMERICAN HISTORY. Em http:// www.coreybarksdale.com/african-american-history/african-religion-traditional-ceremonies.html .
Em 11/03/2022.
BOVISIO, Santiago. Religiões da floresta africana, Religiões comparadas.
Curso, arquivo pessoal de Joaquim Fernandes Neto 2022.
BOVISIO, Santiago. O politeísmo. Religiões comparadas.
Curso, arquivo pessoal de Joaquim Fernandes Neto 2022.
COSTA E SILVA. A Enxada e a Lança. Rio de LJaneiro: Nova Fronteira, 2011.
FAGAN, b. e DURRANI, N. World PreHistory: a brief introduction. Londres: Routledge, 2019.
OLIVEIRA, E. Cosmovisão africana no Brasil. Curitiba: IPAD, 2006.
SANTOS, J. O nagô e a morte. Petrópolis: Vozes, 1986.

Por Alfredo Matta

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