Política religiosa e laicidade: é possível a convivência?

Política religiosa e laicidade: é possível a convivência?

Nos últimos anos, o debate sobre estado laico e liberdade religiosa ganhou o mundo. A França aprovou lei que proíbe o uso do véu islâmico integral (burca e niqab) em espaços públicos e em instituições de ensino de seu território. O mais alto tribunal da Alemanha decidiu que as freiras vão ter que tirar os seus hábitos antes de pisar em qualquer escola, tendo que se vestir com trajes civis, caso queiram lecionar. E aqui no Brasil, ao julgar a constitucionalidade da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, o Supremo Tribunal Federal reiterou que o Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões.

Em todos esses casos, as discussões sobre o papel do Estado e a liberdade de crença e culto tiveram a religiosidade como pano de fundo, levantando a questão sobre até que ponto a presença de políticos eleitos por bancadas religiosas afetam ou não a laicidade do estado.

Em nosso país, a liberdade religiosa é garantida pela Constituição Federal. Em seu artigo 5º, inciso VI, a Carta Magna estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias.

Pela análise do ordenamento jurídico brasileiro, fica claro que estado laico não significa anticlericalismo, e sim que nenhuma igreja ou instituição religiosa deve desfrutar de privilégios políticos, econômicos ou culturais no âmbito público.

É importante esclarecer que a gestão dos assuntos de Estado não depende da profissão de fé, senão de uma ética pessoal e de uma ética pública do agente político que não estão vinculadas à religião.

 

Função pública x Espiritualidade

A condição de “agente público” não retira do ser sua esfera espiritual. Pelo contrário. A espiritualidade e a política são duas realidades fundamentais da vida.

Muitas vezes, é a própria espiritualidade o guia interior que conduz o agente público a agir de forma mais humana, tolerante e inclusiva, centrado na defesa da vida, dos direitos humanos, dos direitos das minorias e de todas as pessoas, sem discriminação de raça ou gênero.

Jorge Waxemberg, em sua obra Vida Espiritual, alerta que separar a vida espiritual da vida cotidiana é uma fuga para escapar das tensões diárias ou para sentir-nos bem frente a Deus, sem importar o que fazemos no mundo. Ele adverte que “enquanto não tivermos uma boa relação com suas criaturas, nosso amor a Deus será mais uma emoção autocompassiva que um amor real”. Para Waxemberg, basta tomar consciência de como nos relacionamos uns com os outros para verificar a qualidade da nossa vida espiritual.

Em uma época como a que vivemos hoje, em que sofremos situações tão dramáticas como as de guerra, enfrentamentos irreconciliáveis, desastres ecológicos, fome, miséria e desespero, poderia parecer incongruente prestar atenção à vida espiritual, em vez de dedicar-nos a aliviar essas tragédias. No entanto, “é precisamente por nossa falta de visão espiritual que não conseguimos sair de nossas misérias atuais”, pondera Jorge.

Edelcio Ottaviani, em Espiritualidade e política: considerações sob um ponto de vista filosófico, assevera que “um bom governante não é o astuto, que visa seus próprios interesses e, se pratica o bem, o faz apenas de forma superficial e com objetivos eleitorais. Um bom governante procura usar o poder espiritual que há dentro de si para fazer o bem de forma desinteressada e amorosa”. (OTTAVIANI, 2015, p. 521, in https://www.sabedoriapolitica.com.br/espiritualidade-e-politica/)

Assim, como acontece conosco, no que diz respeito a nossas crenças, também se passa com nossas ideologias. Como salienta Jorge Waxemberg, “cada um de nós pode elaborar uma teoria sobre como conseguir um mundo melhor. Mas este pensamento não nos une. Pelo contrário, nos leva a lutar contra aqueles que também querem fazer um mundo melhor, porém têm uma teoria diferente da nossa.”

Pergunta Waxemberg, “tem sentido dividir-nos por não pensar a mesma coisa acerca do que não sabemos? Ou, melhor: não seria mais sensato unir-nos através do que temos em comum – o essencial de nossa fé e o evidente de nossa ignorância – em vez de nos separar para afirmar algo que não sabemos se é verdadeiro?”

Vida prática

Um exemplo de espaço democrático que abriga várias correntes religiosas e segmentos da sociedade é o parlamento, seja o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas ou Câmaras Municipais espalhadas por todo o país. É no parlamento que as várias correntes da sociedade se fazem representar pelo voto direto dos cidadãos para produzir as leis que irão orientar nossa sociedade, com o objetivo de regular a vida em comum.

Para compreender como a representação política de certas designações religiosas pode ou não ajudar na formulação de políticas públicas, ou mesmo afetar o caráter laico do estado, a Revista Cafh conversou com dois vereadores da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. A escolha dos entrevistados deveu-se ao fato de serem lideranças religiosas, constituírem suas bases políticas entre esses grupos e à disponibilidade para serem entrevistados pela revista.

Bispo Inaldo Silva é pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e presidente da Comissão de Justiça e Redação, a quem cabe opinar sobre o aspecto constitucional, legal e regimental de todos os projetos apresentados na Casa, os quais não podem tramitar sem seu parecer.

Já Átila A. Nunes é pertencente à Umbanda e desempenha o papel de líder do governo na Câmara Municipal, atuando como porta-voz do prefeito na sede do Poder Legislativo.

Revista Cafh (RC): A consciência espiritual pode contribuir para uma atuação política mais responsiva?

Átila A. Nunes: Entendo que sim. A consciência espiritual, de uma forma mais ampla, é muito mais que uma religião, é uma filosofia de vida. Se essa filosofia é positiva, ela contribui para ampliar o estado de consciência, para afetar as pessoas e o legado que você vai deixar na vida, além de ajudar bastante o trabalho parlamentar, aumentando-lhe a consciência. É como a máxima: “A quem muito é dado, muito será cobrado”. É com esse espírito de responsabilidade e com a clareza do que precisamos entregar pelo bem da sociedade que vejo a relação entre consciência espiritual e atuação política.

Bispo Inaldo Silva: Pode sim. A religião costuma promover harmonia e solidariedade.

RC: É possível representação religiosa e manutenção do estado laico na “Casa do Povo”?

Átila A. Nunes: É lógico que, ao olhar diversas atuações de parlamentares do Brasil que representam segmentos religiosos, pode-se chegar à conclusão que muitas atuações violam o princípio do estado laico. Mas, falando por mim, da minha atuação, acho que é perfeitamente compatível, pois atuo muito no combate à intolerância religiosa. Minha preocupação é que parte dos eleitores umbandistas, candomblecistas e espiritualistas, muitas vezes, sofrem diversos ataques de intolerância religiosa como, por exemplo, ofensas, agressões físicas e ameaças de morte. É muito importante uma atuação política que favoreça, de fato, o cumprimento do estado laico, previsto na constituição para que tenhamos um estado que garanta a livre manifestação religiosa e que as pessoas possam exercer a sua cidadania e seguir com sua fé sem sofrer por ameaça e constrangimento. Eu compreendo o estado laico nesse sentido. Eu não busco privilégio para o grupo religioso que represento, mas sim, ações afirmativas por meio de atos parlamentares que reconheçam datas importantes da religião, por exemplo. Isso, na prática, não afeta ninguém. O que não pode acontecer é uma atuação política que busque impor sua verdade religiosa à totalidade da sociedade. Aí sim, estaríamos rompendo, prejudicando os princípios do estado laico.

Bispo Inaldo Silva: Sim. Estado laico é o estado que trata todos os cidadãos igualmente, independente da religião, promovendo a liberdade religiosa. Apesar do estado ser laico, o vereador é livre para exercer sua crença. Somos 51 vereadores na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e cada um planeja algumas ações focadas em áreas mais restritas, e outras ações que atingem toda a cidade. Mas juntando todas as atividades, tudo contribui para a melhoria da cidade como um todo.

RC: Como o senhor avalia a convivência entre as religiões na cidade do Rio de Janeiro (católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas, candomblecistas etc.)?

Átila A. Nunes: Infelizmente, estamos num momento difícil em se tratando de convivência harmoniosa entre as religiões. O Rio de Janeiro sempre teve um bom histórico de convivência harmônica. Até meados do século XX, havia perseguições policiais etc. Nas décadas de 60 e 70, alcançamos um nível de convivência pacífica entre as religiões. Entretanto, a partir de 2000, passamos a ver o aumento de casos de intolerância religiosa, e esse cenário vem se desenhando na cidade, principalmente, com essa fábrica do ódio. Hoje, a Internet acaba propagando muito a intolerância, o desrespeito e as agressões às pessoas, não só por questões religiosas. Dessa forma, estamos vivendo uma fase muito ruim. Ressalto que esses grupos que propagam o ódio são minoritários. Contudo, merecem atenção e intervenção com ações inibidoras de tais práticas, pois o número de casos que venho recebendo de preconceito e ataques por questões religiosas vêm aumentando, infelizmente. Nesse momento, a convivência não é das melhores. Certas pessoas, por ignorância e estimuladas por péssimas lideranças religiosas, acabam associando religiões espiritualistas à prática do mal, e essa combinação provoca conflitos.

Bispo Inaldo: No geral, é boa. E, na Câmara Municipal, temos uma relação harmoniosa entre todas as religiões. Os casos de intolerância, que vemos às vezes na mídia, são absurdos e devem ser combatidos, mas são pontuais.

RC: Como o fundamento religioso (no sentido espiritual) nas discussões políticas pode ajudar ou atrapalhar a construção de consensos?

Átila A. Nunes: Na teoria, o fundamento religioso deveria ajudar, pois nenhuma religião prega o mal. Pelo contrário, toda religião, teoricamente, deveria pregar o bem, a boa convivência, o amor ao próximo etc. A religião também é filosofia, ela contextualiza a sua vida. Nesse sentido, ela deveria fazer com que o parlamentar fosse até melhor, preocupando-se menos com os interesses próprios e mais com os interesses da sociedade. Todavia, até por uma dinâmica eleitoral, é importante mobilizar o eleitor. E há uma prática antiga da política, mesmo na época dos impérios, segundo a qual você precisa promover um inimigo comum para que o seu eleitor tenha medo, se sinta ameaçado e ache que você é a pessoa que vai protegê-lo. Nesse contexto eleitoral, você acaba distorcendo o que seria uma boa prática política. Hoje, se vê que muitos parlamentares que se elegem por segmento religioso, têm como pauta principal os costumes. E isso, na maioria das vezes, não deveria passar pelo parlamento. Reconheço que casos como união homoafetiva, aborto etc., num país sem planejamento familiar, acaba criando problemas reais que exigem uma atuação parlamentar. Mas muitos temas de costumes debatidos hoje no parlamento são indevidos, na minha opinião. Há uma construção forçada desse fantasma, desse inimigo comum para mobilizar eleitores. Essa atuação viciada de dependência eleitoral é lamentável, pois os princípios religiosos deveriam ajudar a criar sensos de pluralidade, de tolerância social. Mas isso não é o que temos na ordem prática do dia a dia.

Bispo Inaldo: O religioso costuma basear sua vida nas suas convicções religiosas, nos fundamentos de sua religião. Se ele agir com equilíbrio, respeitando o direito do outro, respeitando a nossa Constituição, esses fundamentos não vão atrapalhar. Eu, por exemplo, me pauto no amor que recebi quando me converti a Cristo e que busco levar por onde passo. Seja na Câmara ou nas comunidades, busco ouvir as demandas de quem mais sofre e procuro levar melhorias para esses lugares, minimizando o sofrimento de muita gente através do meu mandato. Aprendi a temer a Deus e esse temor rege minha vida na Igreja e no Parlamento. Evangelho é cuidar do próximo. Como bispo evangélico, aprendi a cuidar do próximo, especialmente dos que mais precisam. Mas é bem verdade que há fanáticos em tudo que é lugar.

RC: Como o senhor analisa a liberdade religiosa e a atuação política dos vereadores ligados à religião na Câmara Municipal do Rio de Janeiro?

Átila A. Nunes: Nós, parlamentares da Câmara Municipal do Rio, temos uma excelente convivência entre nós, graças a uma construção de todos. Mas existem momentos, por exemplo, que basta ser utilizada a expressão “questão de gênero” que a bancada evangélica reprova qualquer projeto. Houve uma discussão, há algum tempo, sobre a necessidade de um mapeamento da identidade de gênero para a efetivação de uma política pública que foi muito desgastante. Houve uma mobilização por parte de certos vereadores para votarem contra só porque existia essa questão de gênero. Penso que isso é lamentável, um equívoco total você vetar uma política pública por causa de uma expressão. Isso traz uma certa cegueira que provoca divergências entre nós. Quando esse comportamento prejudica um projeto importante, a gente luta. Mas, uma vez superada essa questão, temos que seguir em frente. Quem escolheu meus colegas de trabalho foi a sociedade carioca. Eu, particularmente, ainda sou Líder do Governo na Câmara e preciso desses vereadores para aprovar as pautas do governo. Isso faz com que minutos depois das desavenças eu tenha que voltar a dialogar com esses mesmos parlamentares. A política exige a compreensão de que vamos divergir, em algumas situações, de alguns parlamentares que estão ali representando um determinado segmento, e convergir com outros. Divergências pontuais existem, mas não são a regra.

Bispo Inaldo: Graças a Deus, essa liberdade religiosa tem sido respeitada na Câmara Municipal do Rio e as convicções religiosas de cada vereador podem até gerar alguma discussão, mas, no geral, não atrapalham o trabalho em defesa da população do município. O Pai é nosso! Eu, como presidente da Comissão de Justiça e Redação, já dei pareceres pela constitucionalidade de projetos de vereadores de várias religiões, como por exemplo, o que inclui, no calendário da cidade, o Dia de Iemanjá, sem qualquer problema.

RC: Em sua opinião, existe antagonismo entre ciência e fé?

Átila A. Nunes: Sempre que posso estudo a doutrina espírita e tem uma passagem do Allan Kardec que diz que se houver uma dúvida entre a religião e a ciência, opte pela ciência. Em minha visão pessoal, acredito em leis universais. Causa e feito, por exemplo, é uma lei universal. Não foi nenhum parlamento do planeta quem criou isso. Acho que pode haver desencontros entre a ciência e a espiritualidade que podem durar anos, décadas ou séculos. Muitas vezes, a ciência tem um entendimento e, tempos depois, muda, pois a tecnologia se desenvolve e vice e versa. A religião, muitas vezes, pode apresentar uma interpretação distorcida das coisas. Acredito que é mais uma questão de tempo para que esses dois campos convirjam. O que há são divergências pontuais. Embora eu represente um segmento religioso, a Umbanda, eu legislo para a cidade toda, e minha tendência é respeitar muito a ciência. Graças a Deus eu nunca passei por esse dilema. Como minha visão religiosa é bem abrangente, nunca passei pela situação de ver a minha religião apontar para um lado e a ciência para outro. Mas, caso isso acontecesse, eu buscaria aprofundar muito meus estudos e, muito provavelmente, respeitaria a ciência, pois vivemos num país laico e, como tal, precisamos de ter responsabilidade de aprovar leis que vão reger toda a sociedade. É preciso ter a compreensão da responsabilidade do meu voto.

Bispo Inaldo: Em algumas situações, sim. No caso de nós evangélicos, por exemplo, respeitamos a ciência, acreditamos que Deus dá sabedoria aos homens, mas cremos que a ciência é limitada e está abaixo de Deus. Quando a ciência bate de frente com algum princípio bíblico, aí acontece esse antagonismo. Não sou negacionista, acredito na vacina e estou completamente vacinado contra a Covid,-19, mas discordo da ciência quando ela diz que o homem veio do macaco, por exemplo.

Na próxima publicação, analisaremos um exemplo da Prefeitura do Rio de Janeiro sobre como o estado pode agir para garantir a liberdade de crença e o livre exercício de culto na sociedade, direitos esses previstos na Constituição, em meio a tempos de perseguição e intolerância religiosa. Aguarde!

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