Intolerância religiosa: uma ameaça à liberdade de crença e de culto

Intolerância religiosa: uma ameaça à liberdade de crença e de culto

Intolerância religiosa é o crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana e se manifesta por meio de discriminação, profanação ou agressões físicas ou por meio de depredação de templos.

Infelizmente, esse crime tem se tornado cada vez mais comum. No dia 6 de fevereiro deste ano, na Praia da Bica, na Ilha do Governador/RJ, um grupo de candomblecistas e umbandistas foi atacado a tiros enquanto fazia uma homenagem a Iemanjá.

Só em 2021, o Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP) registrou 1.564 casos de crimes que podem estar relacionados à intolerância religiosa, incluídos aí a ridicularização pública, impedimento ou perturbação de cerimônia religiosa.

Na obra Vida Espiritual de Cafh, Santiago Bovisio salienta que a religião é valiosa enquanto dá à alma os meios para elevar-se até a pura vida espiritual, mas que é contraproducente cada vez que quer transformar a vida espiritual em um ato mágico, sacramental e intolerante.

Ao longo dos anos, as religiões vêm lutando exasperadamente entre si para alcançar o predomínio universal, sem alcançá-lo nunca.

Ensina Bovisio que as religiões, para se consolidarem, constituíram-se como poderes do mundo, valendo-se de prerrogativas de raça, de economia e de privilégios políticos. “Neste aspecto, ao não serem universais e necessitando da luta entre si para o predomínio, elas acabam subordinando a vida espiritual a seu fim próprio e arbitrário, impondo às almas sanções confessionais para a realização divina”, ensina.

No artigo “Laicismo e atualidade: relações entre religião civil e estado-nação”, Antonio Tupinambá assevera que “a liberdade de consciência individual, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, a total separação do Estado e das igrejas no âmbito jurídico e político e, por fim, a defesa da tolerância e do diálogo intercultural e interreligioso, são os elementos básicos constitutivos do verdadeiro laicismo.”

Santiago Bovisio alerta que não se remedeia nenhum mal destruindo e combatendo, como ensina a experiência. Para Bovisio, os seres hão de livrar-se das correntes psíquicas de suas religiões para penetrar na pura vida espiritual de si mesmo e do cosmo. “Assim, Cafh espera e trabalha para que surja no mundo esta grande religião universal, onde o valor espiritual em si seja superior aos valores dogmáticos, tradicionais e escatológicos” (A vida espiritual de Cafh).

Neste prisma, trazendo para o âmbito político, a laicidade implica que o estado deve assegurar a liberdade de consciência e de crença, o livre exercício dos cultos religiosos, garantindo, ao mesmo tempo, a proteção dos locais de culto e as suas liturgias.

Pela primeira vez na história, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou a Coordenadoria Executiva de Diversidade Religiosa para garantir o direito de todos os cariocas à liberdade de crença e religião, como fundamento na cidadania e na dignidade da pessoa humana.

A Revista Cafh conversou com o coordenador deste órgão, Márcio Dodds Righetti Mendes, o babalorixá Márcio de Jagun – que é também professor e pesquisador do Programa de Estudos e Pesquisas das Religiões da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PROEPER/UERJ) – sobre como o poder público pode agir para garantir a liberdade religiosa, direito ao culto na sociedade e combater a intolerância.

Revista Cafh (RC): Que políticas públicas estão sendo elaboradas pela Coordenadoria para combater a intolerância religiosa na cidade do Rio de Janeiro e assegurar a liberdade de credo e locais de culto?
Márcio de Jagun (MJ): Podemos afirmar que as principais políticas públicas que estão sendo implementadas são o Plano Municipal de Promoção da Liberdade Religiosa e a Rede Intermunicipal pela Liberdade Religiosa. O Plano é articulado em cinco eixos: Saúde, Meio Ambiente, Segurança, Cultura e Educação, e tem por objetivo estabelecer procedimentos e garantias em toda a nossa cidade, bem como capacitar agentes e equipamentos públicos para lidarem com a diversidade religiosa de forma ampla e respeitosa. Já a Rede Intermunicipal pela Liberdade Religiosa visa aproveitar o protagonismo político e cultural do Rio de Janeiro para, em conjunto com os demais municípios do Estado, constituir um grande sistema de apoio às vítimas de intolerância, fortalecer parcerias institucionais e difundir os direitos inerentes à liberdade de crer e de não crer.

RC: Como é a experiência de integrar ciência e espiritualidade como acadêmico, líder religioso e gestor público?
MJ: Está tudo interligado. Somos seres múltiplos e integrais. A cultura ocidental é que gosta de nos seccionar em ambientes e tarefas. Quanto mais me integro ao tema, no ambiente de pesquisa, na comunidade religiosa e na minha busca espiritual, mais condições tenho de, na gestão pública, contribuir com debates, reflexões e sugestões de ações afirmativas e políticas públicas sobre essa temática.

RC: Em sua opinião, a representação religiosa na política contribui para uma aproximação entre os diversos segmentos da sociedade? Isso tem ocorrido?
MJ: As religiões são muitas, são diversas… Suas forças políticas e interesses também. Da mesma forma, as relações históricas que possuem com a nossa sociedade. A representação de grupos no cenário político é legítima nas democracias. Contudo, a tentativa de estabelecer hegemonias e privilégios, não.

RC: Como o senhor vê a representação política de grupos religiosos e a manutenção do estado laico?
MJ: A representação de grupos políticos é legítima. Porém, nossas instituições precisam ser mais fortes para que não sejam impactadas pelos interesses que violam a laicidade e a liberdade religiosa. Existe ainda uma notória fragilidade em muitos setores, o que revela o quanto a sociedade precisa trabalhar nessa temática. Um Estado laico não pode ter sua gestão pautada por dogmas, nem por interesses de qualquer religião. Por isso, é tão importante o estabelecimento de políticas de estado e não de governo.

RC: Os ataques religiosos a grupos afro e cristãos (por parte de nichos da igreja evangélica) têm diminuído ou recrudescido nos últimos anos aqui no Rio de Janeiro?
MJ: O Estado do Rio de Janeiro foi uma das Unidades Federativas que mais avançou nessa temática nos últimos anos. Foi criada uma Delegacia Especializada (DECRADI), foi implantado o Plano Estadual de Combate à Intolerância Religiosa, foi constituído o primeiro Conselho Estadual de Liberdade Religiosa do Brasil, foi aprovado o Estatuto da Liberdade Religiosa, entre outras importantes medidas. Contudo, a violência étnico-religiosa tem aumentado significativamente. Há alguns fatores que devem ser observados ao analisarmos esses índices: 1) o aumento dos canais de denúncia; 2) a prática de muitos delitos de intolerância pelo crime organizado; 3) a ausência, ou a demora na aplicação de sanções aos autores desses crimes.

RC: Sobre o papel do crime organizado, na capital fluminense temos presenciado um novo fenômeno que é a união entre organizações criminosas e certos grupos religiosos, que o jornal El País chamou de “narcopentecostalismo”. Estas associações vêm impedindo o pleno exercício de religiosidades nos territórios por elas controlados, tendo como alvos preferenciais os afro religiosos. Como a Coordenadoria pretende lidar com essa realidade?
MJ: O que dificulta muito nossa atuação nestes casos é que a segurança pública é atribuição precípua do Estado e não do Município. O Estado não consegue coibir o crime organizado. Nem ao menos retomar as áreas ditas conflagradas. Logo, todos os crimes (inclusive os de violência étnico-religiosa) não contam com a intervenção da segurança pública. A nosso turno, no Município, diante dessas limitações, pretendemos acolher da melhor forma as vítimas criando mecanismos em nosso território. Inclusive, avançando na questão da reparação às vítimas.

RC: Na sua percepção, ao longo da história da humanidade, e do Brasil em especial, está havendo uma maior aceitação da diversidade religiosa?
MJ: Infelizmente, a intolerância religiosa é uma conduta muito antiga entre os humanos. Guerras, conflitos, perseguições e interesses econômicos estiveram e ainda estão entrelaçados com questões religiosas, em várias geografias, eras e culturas. No entanto, percebo que esta questão vem sendo mais debatida a partir do chamado panteão dos Direitos Humanos. No Brasil, temos uma grande defasagem acerca dos Direitos Humanos. O fato de a Declaração Universal da ONU ter sido recepcionada pelo sistema jurídico brasileiro 30 anos depois de sua promulgação revela muito sobre isso… Temos questões raciais ainda não resolvidas, assim como gigantescos preconceitos em relação a gênero, orientação sexual, entre outros. Há ainda muito o que fazer. Porém, existem avanços consistentes que nos trazem esperança.

RC: O senhor acredita que poderemos ver uma aceitação respeitosa entre todas as religiões num futuro próximo ou seria apenas uma utopia? Em caso afirmativo, que atitudes precisamos desenvolver para que isso ocorra?
MJ: Penso que esse processo está em curso e é inevitável. Acredito que ainda haverá fases de recrudescimento e avanço. Mas, é parte desse amadurecimento. Não creio que seja num futuro próximo. Mas será em um futuro próspero.

RC: Como os fundamentos da Umbanda podem ajudar na convivência social mais harmoniosa em nossa cidade?
MJ: A Umbanda é uma religião com estruturas fortes ligadas à solidariedade, à caridade, à humildade, por exemplo. Esses são alguns fatores que contribuem enormemente à convivência social. Há muitas outras contribuições da Umbanda, como a resistência, o empoderamento de símbolos sociais que foram alvo de preconceito e discriminação, como os Pretos Velhos, o Povo da Rua, os Indígenas… Na Umbanda, essas representações sociais são respeitadas, louvadas e ganham um espaço de protagonismo ímpar. Essa é uma revolução sociocultural extraordinária. Uma grande contribuição social.

RC: Em nosso caminho espiritual, Cafh, acreditamos que à medida que o ser se desenvolve, compreende os fundamentos da universalidade e o valor relativo de sua tradição religiosa. Desta forma, o ser se dirige para a realização do ideal subjacente em todo pensamento religioso, que é a união com o divino. Compreendemos que através do desenvolvimento individual é gerado um estado de universalidade que se transmite a todos os seres humanos e, dessa maneira, faz com que seja possível concretizar a ideia de uma “religião universal”. Como o senhor vê essa possibilidade para o homem do futuro?
MJ: Particularmente, acredito muito nesta possibilidade em um futuro remoto. Há muito mais pontos em comum nas religiões do que divergentes. A começar pelas religiões abraamicas (catolicismo, judaísmo e islamismo), que partem de uma única raiz. Até religiões que não derivam das mesmas matrizes acabam convergindo em diversos fatores e buscas existenciais. Não conheço nenhum livro sagrado ou religião culturalista que não objetive a paz e o bem-estar do ser humano. Os ritos e liturgias são os que variam mais, conforme as culturas.

RC: Para finalizar, em sua sua opinião, a juventude tem demonstrado interesse em se desenvolver espiritualmente?
MJ: A juventude no Brasil é muito presente nas religiões. Existe um número considerável de jovens adeptos a diversas matrizes, protagonizando movimentos muito interessantes, nas igrejas católicas, evangélicas, nos terreiros etc. Já na Europa, o número de jovens ativos nas religiões tem decrescido bastante.
No entanto, é importante distinguir que religiosidade e espiritualidade são questões distintas. Mesmo na Europa, apesar da maior rejeição às religiões, existem buscas espirituais alternativas junto a religiões não hegemônicas, ou junto aos chamados movimentos espirituais alternativos.

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