As místicas da Água em infusão

As místicas da Água em infusão

Consideramos que o ecossistema original para humanidade estava nas florestas e savanas africanas, onde o acesso às condições da existência seria aquele mais espontâneo e próprio dos seres que viviam no ambiente em que surgiram. É daí que nasce a percepção de que aqueles que saíram da África na direção do Oriente, rumo ao sol nascente, foram obrigados pelas circunstâncias a conceber outro tipo de relação com o entorno.

As áreas ocupadas estavam distantes dos cenários dentro dos quais os seres tinham emergido e evoluído biologicamente. Para se adaptarem e sobreviverem em outros contextos, os seres precisaram enfrentar diferentes predadores, encontrar novas fontes de alimentos, conhecer outras substâncias… enfim, tiveram que dominar todo um conjunto de relações diferentes e mais difíceis que as condições a que estavam habituados em seu berço originário. Cada novo passo em terras distantes significava uma nova necessidade de trabalho e de adaptação.

Ao atravessarem o deserto do Saara para enveredarem pela Ásia, os desafios parecem ter distanciado os grupos humanos do seu cotidiano divino. As formas religiosas e de concepção mística fora da África não tratavam as divindades como estavam acostumados, como vizinhos, como companheiros de jornada. A necessidade de buscar e preservar água em meio a desertos, de defender-se do frio intenso, obrigou os seres humanos a criarem novas formas de considerar a natureza. E dessa nova forma de relacionar-se com o entorno fez surgir uma nova busca da pureza dos elementos essenciais sobre si mesmos, a partir da própria natureza.

No Oriente, as fontes de água eram distantes, muitas vezes potencialmente contaminadas e escassas, contrapondo-se à condição de água pura, acessível e abundante no continente africano. Essa condição exigiu do oriental a necessidade de aprender formas de tratá-la, de transportá-la e purificá-la pela infusão. Ou seja, os seres tiveram que trabalhar a própria água e suas características para obter a essência e a pureza deste elemento. É assim que o ferver da água passa a ser muito trabalhado e, em particular, com o acréscimo de infusões ou elementos, reunindo-os à própria água.

Mística do Oriente

Ao observar essa relação que se construiu com a água, podemos enveredar pelas ordens místicas que daí emergiram. Assim como a infusão elimina os elementos estranhos à água, a mística do Oriente se aprofundou em mergulhar no íntimo do ser, da própria alma. Nesse paralelo, podemos inferir que as ordens místicas orientais parecem ter escolhido um caminho similar, um mergulho interior capaz de organizar, a partir dos elementos da própria alma, o caminho de purificação que a leva ao encontro divino. Cada proposta mística hindu, chinesa, japonesa, tai ou birmanesa nos chega como uma busca meditativa daquela essência interior, obtida pela alma ao olhar para ela mesma, num mergulho no próprio ser.

Os novos ambientes fora da África já não eram o palco de evolução daqueles seres migrantes, nos quais o silêncio deu lugar ao despertar da mente e da condição humana. As buscas místicas já não são relativas à natureza e às condições iniciais dos seres, vizinha e companheira do cotidiano, como era na África. Agora, a divindade deve ser encontrada no mergulho da essência de si mesmo. Da mesma forma que estes povos resolveram purificar suas águas, a partir do trabalho sobre seus próprios elementos, a busca do divino se dá trabalhando e purificando a si mesmo, buscando dentro de sio contato perdido.

A prática destas místicas orientais está focada na busca do imanifestado, por trás do maia, ou seja, são práticas de purificação dos elementos a partir de si mesmo. Nos parece que, mais uma vez, a forma como o conjunto dos homens buscou o trato com o ambiente dialogou com a busca mística. É assim com o iogue, com as práticas védicas, com os exercícios e orações hindus, com os mantras, com os cânticos etc: um mergulho sobre si mesmo a partir da percepção e do trabalho íntimo que é atingido quando o praticante consegue purificar a práxis na qual mergulha, quando todo desvio ou bulício são anulados, silenciados.

É importante ressaltar que a evolução desta mística, que interpretamos como sendo da “Água em infusão”, esteve vocacionada a esta busca da essência interior a partir do desvelamento do exterior, sempre rico em ilusões, detritos, e/ou de uma série de elementos capazes de nos atrapalhar na busca pela mística mais profunda, que é parte de nós mesmos. Como diz Sevilla (2020), uma mística que atua na busca do não-ser. E a meditação oriental busca o não-ser, o estado mais elementar e essencial obtido pela eliminação, desaparição e superação das impurezas do mundo exterior. Na meditação iogue, por exemplo, a concentração, o silêncio e o trabalho interior parecem ter este paralelo com a forma com que trata a purificação da água. Estes elementos parecem mais fortes ainda quando nos deparamos com a mística mais atual: o budismo, nas palavras do próprio Buda, “não busque no mundo o que está dentro de você”. (CHEDE-MENG TAN, 2014). De forma similar a ideia de Buda, Dom Santiago Bovisio afirma: “Cuando el ser no tiene ya deseos, cuando la renunciación es absoluta no sufre más, no viene más a la tierra y encuentra la eterna felicidad reintegrándose al No Absoluto” (BOVISIO,…

Guardadas as diferenças próprias das abordagens das duas grandes matrizes culturais e de tradição indiana e chinesa, interpretamos que no Oriente a mística, a relação com as condições da existência, inclusive com o divino e com as coisas divinas, caminhou na direção deste mergulho interior, com os hindus estudando as coisas internas e abstratas e os chineses o princípio oculto e fundamental. É como se o místico oriental desejasse retirar todo véu que cobre e confunde a percepção da ecologia interna da alma, buscando depurar essas obstruções existentes no mundo evidente para perceber a essência mais íntima e o centro inamovível da alma.

Estamos, é claro, procurando resumir e captar o que há de mais elementar em milhares de anos de desenvolvimento das místicas que foram emergindo desde a Índia, até a China, sem esquecer o Japão, a Coreia, a Indochina etc., sendo, portando, uma reflexão-provocação, mais que uma pretensão de acerto. Que cada um reflita e perceba se há mesmo sentido nesta provocação. Estou falando das místicas do Budismo, Taoismo, Confucionismo, Hinduísmo, dos mestres do Tibet, e muitos outros. Arriscando a entender que, embora cada um com sua originalidade e percepções próprias, de uma forma geral, caminharam na direção da tentativa de purificação e retorno ao estado original, ao vazio imutado da raiz de tudo, de sintonia com o cosmos e o infinito, em seus estados mais originais, assim como faz quem ferve a água, buscando seu estado mais puro e original.

A nosso ver, essa é uma operação semelhante ao trabalho que estes povos realizaram para purificar e buscar a essência da água pura, para além das impurezas, via infusão, via fervura. Daí perguntamos: seria a mística oriental um tipo de “infusão” ou “fervura” da alma, capaz de revelar o seu íntimo mais profundo?

O texto faz parte de uma série de ensaios produzidos pelo pesquisador da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Alfredo Matta. As informações e opiniões nele contidas são de inteira responsabilidade do autor, e não refletem necessariamente a opinião da Revista.

BOVISIO, Santiago. Religiões Comparadas”, curso, arquivo pessoal de Joaquim Fernandes Neto.
CHEDE-MENG TAN. Search Inside Yourself. California: Harperone, 2014
SEVILLA, Enrique. Meditação. São Paulo: Biblioteca 24 horas, 2020.
WILHEIM, R. I CHING. O livro das Mutações. São Paulo: Pensamento, 1984.
WIKIPEDIA. Yin-yang. Wikipedia. Em https://pt.wikipedia.org/wiki/Yin-yang . Em 14/07/2022.

Por Alfredo Matta

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