Urbanismo como consciência

Urbanismo como consciência

Existirá no futuro uma cidade saudável ou estamos fadados à degradação?

Os problemas das cidades brasileiras não diferem dos problemas encontrados em outras cidades mundo afora. Basta assistirmos às notícias, especialmente quando se tratam das grandes metrópoles, que constatamos serem comuns problemas graves de habitação, transporte, saúde, educação e degradação do meio ambiente. Lidar com essas dificuldades provoca nas pessoas a sensação de que a cidade é um lugar inóspito para se viver.
Este cenário aponta para a necessidade de um planejamento urbano responsável que vise melhorar a qualidade de vida das pessoas. Faz-se urgente retirar do sofrimento as populações mais pobres que habitam favelas, zonas de risco e cidades dormitórios, que obrigam as pessoas a perderem de três a quatro horas no trânsito todos os dias. Infelizmente, enquanto os efeitos causados pelos desequilíbrios são geralmente percebidos, muitas vezes não nos damos conta das causas dos desacertos, que são pouco ou quase nunca discutidas.
Se adotarmos uma visão macro, avistaremos um cenário no qual administradores se transformam em atores sem roteiro diante das inúmeras catástrofes ambientais que temos acompanhado ao longo de décadas, sem conseguir traçar diretrizes eficientes para que os problemas não se repitam.
Como diria o mestre Dom Santiago Bovisio:

“[…] Podemos ter uma grande quantidade de informação sem que, por isso, o nosso estado de consciência seja mais amplo que o de nossos pensamentos e reações habituais. Conhecer não é saber! Por isso, poucas vezes usamos o que conhecemos para orientar a nossa conduta. E isto nos leva por um largo e áspero caminho de desenvolvimento. Parece que precisamos sofrer para incorporar algo valioso à nossa consciência.”

A vida em lotes
Segundo o urbanista Sergio Bernardes, o mundo foi sendo loteado. Primeiro, pela geologia, que o dividiu em lotes continentais e continentes. Depois a política, que dividiu os lotes em países, estados e municípios. E, por fim, os municípios foram divididos em lotes de propriedades privadas. Então, ele pergunta: “com tudo loteado, como podemos intervir?”
De acordo com Bernardes, desde que o Homem, condicionado pelo Poder, começou a destruir a natureza – na suposição de que a sobrevivência dependia disso –, esta se viu forçada a se voltar contra ele, na tentativa de destruir essa doença que roía suas entranhas.
À proporção que se deixava dominar pelo racionalismo, a Natureza circundante passava a ser vista como um objeto do qual, psicologicamente, o Homem se desligava. Assim, tornou-se impossível para a maioria das pessoas a percepção da grande unidade e, mais remota ainda, a ideia de que, ao cortar uma árvore comete-se uma auto mutilação.
Esse isolacionismo cresceu a ponto de o Homem deixar de perceber seus liames com seus semelhantes, os quais, como objetos da natureza, também passaram a ser vítimas de sua agressão.
Essas considerações são necessárias à compreensão de que, hoje, o urbanista tem à sua frente a mais digna das tarefas: restituir ao Homem a possibilidade de restaurar, através do meio ambiente, a visão do mundo, da natureza, da sociedade e de si mesmo como um todo indivisível.
Nesse jogo do poder político e econômico do qual nos tornamos reféns, os efeitos seguem seu curso sem correção e, raramente, vemos gestores públicos que despertam para uma tomada de consciência na direção de agirem preventivamente em favor da proteção do meio ambiente e do próprio homem, gerando diretrizes ao invés de, apenas, administrarem os efeitos.
Pensar a importância do planejamento urbano como guia para mitigar os problemas das grandes cidades se torna necessário e urgente. E, essa é uma conversa que poderia vir desde a escola. Ensinar os jovens a reconhecer os agentes causadores do desequilíbrio urbano e dos danos que provocamos ao nosso ecossistema seria uma ação propositiva. Afinal, precisamos formar cidadãos, de diversas profissões, para atuarem em cidades tornando-as mais humanas e equitativas, pois a cidade é nosso habitat e raramente falamos dela, a não ser para reclamar de algo em nossa própria esquina ou, talvez, para reclamar da quantidade de moradores de rua nas calçadas.
A rua como palco dos destinos
O número alarmante de moradores de rua expõe desigualdades estruturais na sociedade brasileira que foram agravadas pela crise sanitária da COVID-19, evidenciando a desassistência, a degradação e a vulnerabilidade de parcela da população.
A população em situação de rua no Brasil cresceu 38% entre 2019 e 2022, quando atingiu 281.472 pessoas. A estimativa, que revela o impacto da pandemia de Covid-19 nesse segmento populacional, consta da publicação preliminar “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (2012-2022)”. Em uma década, de 2012 a 2022, o crescimento desse segmento da população foi de 211%. Trata-se de uma expansão muito superior à da população brasileira na última década, de apenas 11% entre 2011 e 2021, na comparação com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Há um processo de desumanização histórico das camadas mais pobres da sociedade, apartando-as de seus direitos básicos e fundamentais, como também do seu direito à cidade. Para os grupos economicamente e socialmente privilegiados, esses ‘outros’ não possuem os mesmos direitos, nem merecem oportunidades pelo não reconhecimento destes como seus iguais”.
Cerca de “40,1% das pessoas nessa situação estão em municípios com mais de 900 mil habitantes e 77,02% em cidades com mais de 100 mil pessoas”, enquanto que 6,63%, vivem em “municípios menores, com até 10 mil habitantes” .
Essas notícias e esses dados alarmantes a respeito do número de pessoas vivendo precariamente nas ruas causam uma sensação de impotência. A TV e os jornais noticiam os óbitos causados pelas baixas temperaturas no inverno e a fome e as condições degradantes. Mas, o que vemos são ações promovidas pelos órgãos e agentes públicos totalmente ineficientes.
Segundo Milton Santos, um dos mais importantes geógrafos brasileiros, a dificuldade é que nós ainda estamos confundindo Direitos do Homem com Direitos Humanos. Os Direitos Humanos estão indo bem, agora, quanto aos Direitos do Homem, ainda estamos muito atrasados. (SANTOS,1998, p.118)

. […] “dar-nos conta” faz parte de um processo de tomada de consciência. No princípio, dar-nos conta é só informação. Por exemplo, ao viajar em um avião, já sabemos que estamos voando; também sabemos que estamos sobre a Terra e admiramos a sua paisagem. Mas o que vemos pela janela ainda não nos diz que a Terra é a nossa casa, o lar de todos os seres humanos. Para chegar a essa consciência, além de dar-nos conta de nossa situação, necessitamos transpassar as barreiras que costumamos colocar entre nós e os demais, e entre o que cremos que somos e o que nos diz que sabemos sobre o universo. O processo de tomada de consciência é inclusivo; cada vez que expandimos a nossa consciência, incluímos o novo que cobrimos com essa expansão. Do ponto de vista espiritual, esse processo é místico. Chamamos Mística do Coração, porque o impulsiona o amor.”

O alerta sobre eventos catastróficos
Temos assistido também a notícias não menos alarmantes sobre o impacto dos repetidos eventos climáticos que têm provocado furações, ciclones, inundações e deslizamentos, não só no Brasil como em outros países. Aqui, esses fenômenos provocam efeitos catastróficos nas regiões com populações mais vulneráveis que não têm, em muitos casos, acesso a serviços básicos como saneamento e infraestrutura de serviços.
Sergio Bernardes já chamava atenção das autoridades, há mais de 40 anos, para o perigo das construções, habitações ou estradas próximas a áreas de floresta e de rios. Sublinhando em diversos estudos que acima da cota de 100 metros, as chuvas são duas ou três vezes mais intensas que nas áreas baixas e, ainda, que esses solos das florestas deveriam ser minimamente tocados para evitar desmoronamento e manter o equilíbrio ecológico. No entanto, os repetidos desmoronamentos nas favelas parecem, sempre, uma surpresa quando assistimos às entrevistas dos administradores do poder…

[…] urbanismo é equilíbrio entre concentração e dispersão; e arquitetura é só abrigo. O resto é enfeite. Se você encontrar esse equilíbrio, vai ter um urbanismo com funções sociais e não um urbanismo com funções imediatistas. Então você terá uma arquitetura sadia, arquitetos para fazer coisas sadias. O arquiteto faz o microcosmo em um macrocosmo, ele é regido por eventos independentes da vontade dele. A arquitetura é uma coisa tão simples, mas ela deve ser bonita, ela deve conter amor, ela deve conter ritmo, conter um espaço de luz e sombra. Mas para implantar onde? Em que modelo de cidade?

Considero a curiosidade uma mola mestra e um agente provocador que nos leva à investigação sobre algo desconhecido e/ou a um novo olhar, mesmo que para um tema já visto. Iniciei esse artigo fazendo a pergunta que me conduziu. E, agora encerro, também, com uma pergunta que pretendo que me leve a percorrer um caminho esperançoso ao olhar o futuro.

Podemos imaginar cidades no Futuro planejadas a partir de suas potencialidades territoriais, considerando e acolhendo as complexidades da geografia humana, da paisagem e dos aspectos ecológicos necessários para o equilíbrio ambiental do planeta?

BIBLIOGRAFIA

 

*Waxemberg, Jorge – Práticas de Desenvolvimento( curso de Cafh- edição 2019 – pag 10.
Livros
BERNARDES, Sergio. Cidade – a sobrevivência do poder, Rio de Janeiro, Guavira editores, 1975
I.BERNARDES, Kykah. II. CAVALCANTI, Lauro, organizadores. Sergio Bernardes : (1919-2002), Artviva Editora.
1.SANTOS, Milton 1926-2001 – Biografia – Entrevistas. 2.Geógrafos – Brasil, I.LEITE, Maria Angela P..II. Série, Azougue Editorial.

Jornais e Revistas
Módulo Especial Sergio Bernardes, MAM-RJ,out de 1983.
O Rio do Futuro, Manchete, número especial, abril 1965.
Revista Status, 1976.

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