As místicas da água em transformação
Explorando a relação entre o ser humano, a natureza e o divino. Reflita sobre os caminhos espirituais e suas visões de purificação para alcançar um futuro pleno e glorioso.
Segundo nossa percepção, há uma ligação entre a relação que estabelece o ser humano com a natureza e sua forma mística. Foi baseado nessa premissa que construímos o primeiro artigo desta série, buscando associar a relação do despertar do homo sapiens do silêncio natural com a relação criada e a natureza que o circundava, funcionando como uma extensão de seus elementos. Daí a própria mística africana trabalhar a vizinhança fraterna entre o que é divino e o que é humano.
No segundo artigo, ao acompanhar a saída do ser humano do continente africano e sua luta pela adaptação ao desconhecido, associamos que uma das formas que ele encontrou para sobreviver foi a busca da essência daquilo que havia perdido: a sua pureza. Como estamos associando sempre o ambiente e a natureza à água, falamos, na ocasião, da “água de infusão”, que representa o ser humano aquecendo e fervendo, ou, às vezes, acrescentando infusões, para purificá-la. Essa forma de mergulhar na essência nos parece aquela mais adotada pelas sociedades orientais, pelo extremo oriental da Ásia, desde a Índia em diante, incluindo, possivelmente, o xamanismo americano. Assim, a busca do centro inamovível, da essência do ser via meditação, nos parece similar à busca da essência da natureza, conforme acontece com quem ferve a água: ou seja, o Oriente busca mexer no interior em busca da essência, e assim obter a pureza.
Povos Indo-europeus e semitas que ocuparam o ocidente parecem ter preferido recuperar o ambiente natural não por uma busca da essência perdida, mas sim pela adoção de elementos externos que poderiam melhorar, ou curar, a natureza. No caso específico da água, os povos ocidentais optaram por acrescentar algo à água, desinfetando-a, retirando dela impurezas pelo aporte de forças externas, seja pelo ato de filtragem, seja pela introdução de um agente químico capaz de matar as impurezas, como o álcool, por exemplo. A invenção de bebidas fermentadas ou destiladas seriam, assim, exemplos da forma com que a mística ocidental pretende resolver a ameaça do ambiente impuro e perigoso, e da necessidade de adaptação advinda do deslocamento para ambientes desconhecidos. Assim, percebe-se que, ao contrário do Oriente, o mundo ocidental busca externamente o “remédio” capaz de atuar regenerando e obtendo a purificação.
Enquanto o Oriente mergulha profundamente na busca da essência no próprio ser, construindo uma complexa mística voltada para o autoconhecimento e o silêncio – perdendo, assim, o foco nos problemas sociais –, o Ocidente foca exatamente nestes problemas, na misericórdia, buscando fora de si, na força superior externa – por meio das orações –, a orientação para a solução da vida (GAARDER, HELLERN e NOTKER, 2001). Tanto é assim que as principais religiões e ordens místicas que lhes são derivadas no Ocidente, como o judaísmo, o zoroastrismo, o cristianismo e o islamismo, têm em comum a busca da intervenção divina em favor do bem e da salvação (AGNOLIN, 2005).
Cabe dizer que mesmo antes das grandes religiões monoteístas, as religiões baseadas nas mitologias, como a grega, a nórdica e outras, desenvolviam argumentos sobre a intervenção dos deuses e deusas na vida das pessoas, de maneira que estas melhorariam e se realizariam na medida da intervenção divina (SILVA, 2014).
Deixando de lado a comparação e a tendência que temos de hierarquizar e considerar que tal ou qual religião é superior, ou qual será a certa, em todas elas o sentido do trabalho místico é o de receber do divino a orientação e a salvação, na direção do caminho do bem e das bençãos. O que desenvolve a noção de participação e de envolvimento com o outro, misericórdia e compaixão. Em nossa visão, o maior aporte destas tradições místicas ocidentais foi exatamente o desenvolvimento da compaixão e da misericórdia, bem como da noção de necessidade de serviço e atendimento ao próximo como parte do trabalho místico. Ao contrário das místicas orientais mais focadas no trabalho interior e no desenvolvimento do silêncio.
Buscar a mística fora de si, em uma divindade externa que intervém, exige entender o coletivo como um conjunto coeso de companheiros envolvidos em um só destino comum. As religiões ocidentais e suas ordens místicas são muito desenvolvidas nesse sentido. A percepção de que a salvação viria de fora, de uma intervenção angelical, ou de um milagre, foi criando a ideia de comunidade e de comunhão, que fizeram a humanidade entender que fazia parte do divino a preocupação com o conjunto dos seres humanos e com a qualidade de vida de toda humanidade.
Paraíso
Não queremos desconsiderar nenhuma das grandes religiões ocidentais, mas por questões de método e informação, vamos comentar rapidamente a concepção de paraíso nas quatro mais importantes.
Para o judaísmo, no céu está o Shamayim, a casa de Javé e dos anjos, assim como de todos os que viveram uma vida justa e merecedora, que vivem em sete céus, cada um governado por um anjo (BLECH, 2004). Para o zoroastrismo há um paraíso somente para os bons e justos, no final, quando Ariman será finalmente destruído e Ormuz, com sua infinita justiça, vencerá e reinará (BREUIL, 1988). Para o cristianismo, o paraíso Cristão é um lugar de plenitude da vida onde não haverá mais dor nem sofrimento, devendo a alma salvar-se a sim mesma para estar lá (QUEIRUGA, 2007). Já de acordo com o islamismo, o paraíso é um lugar de grandes bençãos e belezas que satisfarão a todos. (Al-Medina, 2022)”.
Isto posto, a ideia de que haverá um futuro glorioso e pleno implica em entender que precisamos nos purificar e proceder de forma orientada para eliminar impurezas (ou pecados).
Os três artigos que trataram da mística africana, da mística oriental e este, voltado para a mística desenvolvida no ocidente, são um exercício para que possamos refletir sobre como a humanidade desenvolveu historicamente, seu processo místico. Me refiro a um exercício pois nossa pretensão é fazer com que o leitor reflita e construa sua própria interpretação, inclusive, se for o caso, contribuindo, contrariando, ou completando com elementos seus aquilo que percebe sobre o assunto. O fundamental é provocar a construção em cada um, de um pensamento seu sobre o desenvolvimento místico da humanidade em termos históricos.
O próximo e último artigo desta série vai procurar refletir sobre o desenvolvimento da mística de Cafh.
Bibliografia
AGNOLIN, Adone. Monoteísmo e dualismo: as religiões de salvação. São Paulo: HEDRA, 2005.
AL-MEDINA, Dar. Qué es el Islan? Una introducición para no Musulmanes. Dar al-Medina, 2022.
BLECH, Benjamin. O mais completo guia sobre o judaísmo. São Paulo: Sêfer, 2004.
BLEUIL, Paul. Zoroastro, religião e filosofia. São Paulo: Ibrasa, 1988.
GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor e NOTKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
QUEIRUGA, Andrés. A esperança apesar do mal: a ressurreição como horizonte. São Paulo: Edições Paulinas, 2007.
SILVA, ANDRÉ. KÁTHARSIS E PSYCHÉ: a purificação como salvação da alma no Fédon de Platão. Dissertação mestrado em filosofia, da Universidade Federal Fluminense. Niterói, UFF, 2014.
Por Alfredo Matta