Os desafios da aldeia global

Alexandre Silva Fernandes

Vendo o noticiário sobre a ajuda às vítimas de uma das maiores tragédias climáticas do Brasil, as enchentes em Santa Catarina, chamou-me a atenção a figura de um anônimo bombeiro, entrevistado pelo telejornal, que teve sua casa destruída pela água. Segundo a reportagem, ele trabalhava dia e noite no resgate das vítimas,

enquanto sua mulher se alojava no próprio Batalhão, onde ajudava no preparo das refeições.

Fiquei pensando: “Que matéria bem feita. Como acharam um cara que perdeu tudo e continua ajudando os demais? Ainda mais um bombeiro, um grande personagem com toda a pinta de herói… Essa matéria com certeza vai para o Fantástico e o Jornal Nacional…” Sensacionalismos à parte, este fato me fez refletir sobre uma situação muito maior: como, nesta sociedade interligada, onde o pedido de ajuda vem em imagens de helicóptero, com conta bancária para doações, transmissão pela Internet em tempo real e com direito a torpedos com as últimas informações, ainda nos “espantamos” com um gesto de solidariedade, num mundo tão desenvolvido, repleto de apelos e instrumentos para a integração e inclusão social, onde atitudes como essas deveriam ser recorrentes?

A globalização tornou-se a panacéia da modernidade. Por mundo globalizado entende-se integração, compartilhamento de tecnologias e hábitos de consumo, sonhos e modos de viver; um mundo unificado, horizontal, que se assemelharia a uma “Aldeia Global”. Este termo foi cunhado por Marshall McLuhan na década de 60, querendo dizer que o progresso tecnológico estava reduzindo o planeta às mesmas dimensões de uma aldeia, com a possibilidade de se intercomunicar com qualquer pessoa que nela vivesse. Para McLuhan, o desenvolvimento das Tecnologias da Informação (TI) tornaria o mundo mais interdependente, com estreitas relações comerciais, políticas e sociais, responsáveis pela diminuição das distâncias, das incompreensões entre as pessoas e pela emergência de uma consciência interplanetária. McLuhan acreditava ainda que a profunda interligação entre todas as regiões do globo originaria uma poderosa teia de dependências mútuas, promotoras de solidariedade e de luta pelos mesmos ideais de desenvolvimento sustentável do planeta, habitat dessa “Aldeia Global”.

Analisando a questão, podemos constatar realmente que vivemos em um mundo interativo. Localizo e contato qualquer pessoa pelo Orkut, compro e pago pela internet, assisto tevê pelo celular e perco dinheiro a qualquer suspiro do mercado. Entretanto, com tudo isto, o grau de interação humana ainda é restrito. Toda a conectividade advinda da sociedade em rede está afetando a uma pequena parte e a um segmento específico das relações humanas.

Raros lampejos de clarividência, ainda estamos muito distantes dessa consciência global, e mesmo de viver em uma “Aldeia Global”. Percebemos a união, a coexistência e a integração muito mais em tudo aquilo que é mundano, material e sensível do que naquilo que realmente nos identifica e permite a autoconsciência, através do Espírito.

Na história do desenvolvimento humano, a adaptação do homem à natureza e à convivência em sociedade a partir de um estado de consciência racional, fruto da vontade, é um processo lento, árduo, resultado das inúmeras casualidades, das tentativas e erros. Embora a criatividade e potencialidade da mente sejam infinitas e ilimitadas, sua identificação com o todo enquanto energia divina é ainda muito rudimentar. Imperam princípios de sobrevivência instintiva e as pressões do meio e da mente autocentrada fazem com que toda engenhosidade humana trabalhe para si própria, como um instrumento de perpetuidade individual que é, de per si, segregacionista e dissociadora.

A Aldeia Global, como vislumbrada por McLuhan, é uma quimera virtual, aplicável, somente, às transações comerciais. Pelo menos no mundo do homo economicus, a máxima quântica da asa da borboleta que tremula na China e afeta todo o Espaço é uma realidade evidente. Basta verificar as crises econômicas que derrubam bolsas em todo o mundo em questão de minutos. Realmente neste nicho, há aldeia global, mas uma aldeia de poucos caciques que pouco se importam com os efeitos de suas negociatas para o resto do mundo. Este tipo de globalização financista não atinge o “quão bom e alegre é viverem os irmãos em união.”

O modelo de sociedade que construímos caminha para um futuro perturbador. O estado de consciência mundano-materialista está levando a constantes guerras, ao aprofundamento da intolerância e à crescente disparidade entre ricos e pobres. Somos educados e criados para ser “alguém na vida” e, para isso, é necessário seguir um trâmite, percorrer o caminho do sucesso, onde as escolhas são pré-definidas pela comunidade, sem as quais não me incluo e não atinjo meu fim. Para a maioria das pessoas, o que temos e conquistamos é, invariavelmente, tudo o que somos.

Para quebrar esse paradigma é necessária a expansão do estado de consciência. E um dos caminhos para isso é a Ascética da Renúncia vivenciada em Cafh, que vê na prática do desapego consciente um instrumento de transformação do ser e da vida.

Segundo alguns entendimentos, o desapego é uma das etapas mais difíceis do desenvolvimento espiritual, por que requer uma separação de tudo o que é física, emocional e psicologicamente possuído. Num contexto social onde o acúmulo distingue o bem, o bom e o belo, causa conflito assumir a perspectiva de que as posses possam ser verdadeiros laços de egoísmo com o que é transitório, ilusório e falso.

Quando a alma* é gradualmente despertada – como, por exemplo, com o ato de surpreender-se ao perceber a grandeza de um personagem da tevê – ela deseja buscar sua própria identidade. A alma não quer mais se identificar com a personalidade humana; ela procura fazer com que a personalidade humana se identifique com ela.

Assim tem início o processo de perda da separatividade e da preocupação com o contingencial, com o efêmero. A alma começa então a incitar sua personalidade a assumir uma perspectiva imparcial e um desinteresse pelas posses de qualquer natureza, libertando-a dos véus e das amarras intelectuais, para desabrochar o verdadeiro Espírito Humano.

Quando a mente se compromete com a alma e dá início a este processo, muitas relações egoístas perdem o valor e são abandonadas. Aos poucos, e de modo harmonioso, ocorre uma espécie de renúncia pacificadora. Pela contemplação, meditação e silêncio, a alma se torna consciente do desapego de tudo que é transitório e ilusório.

Ao identificar os indivíduos como almas, o amor assume um vínculo superior eterno, como fez o ilustre bombeiro, que abriu mão de recompor sua própria vida naquele momento para ajudar os outros. Talvez, na dura realidade enfrentada pelos catarinenses, seria mesmo ilusório acreditar que daria para reconstruir a sua vida naquele momento; a sobriedade revelou que seu trabalho no resgate dos soterrados e desabrigados era mais importante. E assim ele fez. Ou seja, o amor e o desapego apuraram o seu senso de urgência, de necessidade e da própria realidade.

Mesmo sem querer, esse bombeiro nos mostrou que é possível construir uma Aldeia Global que se comunica muito mais com a energia do coração do que com os códigos binários das tecnologias digitais. Revelou que a busca da alma pode libertar dos desejos consumistas as vocações de renúncia, transformando as pessoas em pequenos heróis, onde a glória, a virtude e a deferência cedem lugar ao anonimato, ao silêncio e ao desapego.

É só a partir da virtude do trabalho local que seremos globais, construtores de uma verdadeira Aldeia, pautada na harmonia, na interdependência e na expansão da consciência.

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