Tocada pelas mãos

Beatriz Pimentel

Quando minha mãe e minha irmã ingressaram em Cafh, vários anos atrás, pensei que teria tudo resolvido. Elas me ensinariam o que estavam aprendendo, e nossas longas conversas a respeito do significado da vida me dariam todas as respostas que precisava. Bem…eu estava errada. A vida tinha me reservado uma experiência que me transformaria

e revelaria quem eu realmente sou.

Quando tinha dezoito anos, meu principal objetivo na vida era seguir carreira em performance pianística, já que vinha estudando música há cerca de dez anos. Praticava piano uma média de quatro a seis horas por dia. Era tão entusiasmada e determinada em superar as dificuldades técnicas das músicas que tocava, que não me dava conta do próposito verdadeiro da minha música. Havia ganho prêmios em competições e tocado em diversos concertos. Orgulho e satisfação pessoal eram tudo o que eu via na minha frente.

Estava completamente identificada com o que fazia, com minha profissão, não tinha ideia de que haveria algo além disso. Eu era uma pianista. Nada mais.

Um dia, enquanto praticava uma peça difícil, minha mão direita começou a doer. “Ótimo”, pensei, “isto significa que estou trabalhando bem os meus músculos”. Sem dor não há benefício, certo? Errado… Ignorei os avisos do meu corpo e continuei a praticar mesmo com dor. Depois de semanas tocando desta forma, num dado momento, não aguentei mais tocar. A dor era insuportável.

Várias pessoas me alertaram de que devia estar tocando de forma errada, minha técnica estaria muito tensa, mas não prestei atenção. Até mesmo meu professor de piano não acreditava que havia um problema com o jeito que eu tocava.

Por mais de um ano visitei médicos e especialistas, tentei todos os tipos de tratamento, sem resultados. Minha ansiedade e frustração aumentavam a cada dia, até o ponto em que finalmente me dei conta de que ainda não tinha ido ao maior especialista de todos: Deus. A única coisa que ainda não havia feito era orar. Precisava orar, pedir orientação e respostas, uma luz. Estava com medo.

Apesar de não fazer parte de Cafh nesta época, eu já me relacionava com Deus na imagem feminina da Divina Mãe, como me ensinara minha mãe. Para mim sempre pareceu muito natural esta relação com o Divino. Quando comecei a orar sobre, perguntava à Divina Mãe: “Quem sou eu de verdade, e por que isto está acontecendo comigo?” Com estas questões em mente, tinha de procurar dentro de mim por esta outra pessoa, aquela que não era a pianista. Minha carreira era tão importante que não podia imaginar a possibilidade de não tocar mais piano. Mas estava ali, bem na minha frente. Tive que enfrentar a questão tão temida: “e se minha mão foi tão prejudicada a ponto de nunca mais poder tocar piano?”

Robert Schumann, compositor e pianista do século dezenove, viu-se obcecado com a ideia de superar sua técnica pianística e resolver as limitações físicas de suas mãos. Ele desenvolveu uma espécie de máquina para fortalecer os dedos fracos, usando um mecanismo de alongamento e levantamento de peso. Era como uma academia de ginástica para os dedos! Schumann usou tanto este aparelho que acabou machucando as mãos permanentemente, colocando um fim em sua carreira de pianista virtuoso. Não se sabe ao certo se foi esta a causa da desordem mental que sofreu, mas provavelmente afetou o triste fim da sua história: ele passou seus últimos anos num hospício, com uma confusão mental e depressão profundas.

Talvez ele nunca tenha encontrado uma resposta para seu destino, mas outra pessoa sim, várias décadas antes dele: Ludwig van Beethoven, que ainda muito jovem, no auge de sua carreira de pianista e compositor, começou a perder a audição. Com a surdez aumentando e sem possibilidade de cura, a tristeza e o desespero de Beethoven quase o levaram a tirar a própria vida. Ele escreveu numa carta a seus irmãos: “a única coisa que me impediu de tirar minha própria vida, depois que a surdez me atacou, foi minha arte.” “É impossível para mim deixar este mundo antes de produzir todas as obras que eu sinto o impulso de compor. Paciência – esta é a virtude que eu preciso escolher como minha guia, e agora eu a possuo.” “Deus poderoso, tu olhas para dentro das profundezas de minha alma, tu vês dentro de meu coração e tu sabes que ele está repleto de amor pela humanidade e um desejo de fazer o bem.” Esta é uma das passagens mais tocantes desta carta que me ajudou a compreender meu propósito com a música.

Apesar das frequentes explosões de temperamento, de se tornar um excêntrico e se isolar completamente para evitar que as pessoas soubessem de sua surdez, Beethoven tinha uma enorme paixão e desejo de proclamar uma mensagem divina ao mundo através de sua música. Afirmava que, enquanto Deus continuasse a falar com ele, iria prosseguir compondo.

Na verdade, Beethoven dizia que podia escutar dentro de sua mente a música que já tinha sido criada nos céus – ele era um canal dos sons divinos. Em meio a tanta raiva e desespero, acabou compreendendo seu destino. Mesmo depois de ficar completamente surdo, Beethoven compos as mais lindas músicas, até o fim de sua vida.

Se Beethoven conseguiu seguir sua vida desta maneira, depois de sofrer este tremendo desafio, certamente eu poderia fazer o mesmo. A dor na minha mão nem de perto se comparava ao drama de um dos maiores compositores da humanidade. Eu me senti tão pequena…como poderia ter pena de mim mesma? Minha mão não era nada comparada a isto! Certamente não sou nenhum Schumann ou Beethoven, mas posso me identificar com eles. Suas vidas me deram uma ideia de como alguém se sente quando começa a perder o que é importante para si próprio. Bem, eu achava que tocar piano era a coisa mais importante para mim, até que começaram os problemas com minha mão. Isto me fez parar e querer orar. Orar intensamente, abrindo meu coração e deixando todas emoções e pensamentos fluirem. Comecei a me perguntar qual era o sentido da minha vida.

Depois que passei a orar à Divina Mãe, tive o desejo de entrar em Cafh e fazer o compromisso que eu observara ter dado um novo sentido às vidas de minha mãe e minha irmã. Comecei a aprender o que siginificava confiar na vontade divina.

Paciência era meu maior obstáculo. Eu queria um resultado rápido, mas não havia nada rápido neste processo de chegar a lugares desconhecidos dentro de mim mesma. Quando orava, uma voz interior dizia: “você não é uma pianista ou musicista”. Como assim? O que mais eu poderia ser?

As respostas vinham muito lentamente, mas uma delas foi a compreensão de que eu estava temporariamente “tomando emprestada” a habilidade de tocar piano. Esta habilidade não era simplesmente para minha satisfação e nem era meu maior objetivo na vida. Comecei a dar-me conta de que eu era um canal da Divina Mãe. De alguma forma deveria usar esta habilidade para os outros, não para mim. Vi que o autoconhecimento era um processo de descobertas para toda a vida. Se eu estivesse aberta, as possibilidades seriam infinitas.

Por outro lado, tinha de cuidar do processo físico da cura da minha mão. Precisava parar de tocar por quanto tempo fosse necessário, deixar de pensar em concertos e competições. Deveria dar um tempo para permitir que outras coisas preenchessem minha mente e meu coração.

Que oportunidade preciosa! À medida que me libertava deste estado mental, muitas portas começaram a se abrir. Um dia conheci uma fisioterapeuta, pessoa muito especial que ajudou a curar-me por fora e por dentro. Fez-me reconhecer as limitações do meu corpo e a ver as conexões entre meu bem-estar físico, emocional e espiritual – o que seria crucial neste tratamento. Lentamente minha mão começou a melhorar.

Nessa ocasião, tive a oportunidade de conhecer um renomado pianista que abriu meus olhos para a forma como eu tocava piano. Disse-me que eu tocava com muita tensão. Se quisesse melhorar e seguir tocando no futuro, deveria começar de novo, dos princípios básicos, aprender tudo outra vez. Que lição de humildade foi para mim! Imagine só… começar de novo depois de tantos anos!

Após um ano de fisioterapia voltei a tocar, mas seguindo os conselhos do pianista. Aprendi muito com esta experiência de retomar do início, vagarosamente. Primeiro foi humildade, depois paciência e perseverança. Foi um momento para crescer espiritualmente e fazer de minha rotina uma rotina espiritual. Dei-me conta de que não havia uma vida espiritual separada da vida. Tudo começava a fazer sentido para mim.

Aproveitei para aprender mais sobre música. No passado, estava sempre tão concentrada em passar horas praticando e tocando, que nunca lia o suficiente sobre compositores ou ouvia outros tipos de música clássica. O tempo extra que tinha agora permitia expandir meus conhecimentos – eu realmente não sabia nada sobre música!

Outro aspecto positivo desta experiência foi o fato de o problema ter sido apenas na mão direita; ainda podia tocar com a esquerda. Normalmente ela é mais fraca em pessoas destras. Após ter sido orientada pelo renomado pianista, aprendido como recomeçar, decidi concentrar-me no desenvolvimento da mão esquerda enquanto a direita melhorava. Como podem imaginar, minha mão esquerda ficou cada vez mais forte. Meu professor disse que eu poderia aprender uma peça incrível, um concerto para piano e orquestra que era tocado apenas com a mão esquerda. Nem sabia que tal obra existia! Aprender uma música em que o pianista solista tocava com apenas uma mão… isto soava muito interessante!

Maurice Ravel, compositor impressionista francês, foi um dos compositores contratados a escrever um concerto para a mão esquerda para um pianista austríaco que perdeu o braço direito na primeira guerra mundial. Que obra sensacional Ravel escreveu! Imediatamente me apaixonei pela música. Esta foi a primeira vez, depois de tantas fisioterapias, que novamente me preenchia com os sons maravilhosos do piano. Ser capaz de tocar de novo teve um significado muito especial, porque algo dentro de mim havia se transformado para sempre.

Dois anos depois, já sem dores na mão direita, tive a oportunidade de fazer mestrado em música nos Estados Unidos, na Universidade de Wyoming. Minha nova professora foi maravilhosa, ajudou-me principalmente a prevenir futuros problemas nas mãos. Ao mesmo tempo, estava tendo uma experiência de vida muito rica no exterior. Continuei praticando o concerto de Ravel para a mão esquerda. Como era uma peça difícil e raramente tocada, recebi vários convites para tocá-la em público.

Após uma apresentação, tive uma oferta para fazer doutorado em artes musicais na Universidade de Houston. Mudei-me então, em busca de novas experiências. Paralelamente, comecei a dar aulas particulares para crianças e a tocar numa igreja. Conheci meu esposo maravilhoso e estamos esperando nossa primeira filhinha. Reconectei-me com um grupo de Cafh, onde laços de amizade espiritual se desenvolveram outra vez. Que virada inesperada minha vida deu, mas quão recompensadora!

Minha estória de desafios com as mãos não parou aí. Parece que vão me acompanhar por toda a vida, mas de formas diferentes e com propósitos diferentes. Há dois anos, comecei a desenvolver uma artrite na mão esquerda. Não pude evitar aqueles antigos sentimentos fortes de ansiedade, tristeza e preocupação.

No entanto, lembrei-me que a Divina Mãe havia me mostrado que eu tinha um propósito que ia além de minhas limitações e além de mim mesma. Minha vida estava em Suas mãos. Eu era um canal de Seu amor. Através da música poderia tocar o coração das pessoas, influenciar positivamente a vida de crianças. Sabia que a Divina Mãe estava novamente tentando me mostrar algo através das mãos: me lembrar quem sou, ajudar a aprofundar-me em mim mesma para reconectar-me com o divino e redescobrir meu lugar no mundo. A Divina Mãe estava me “sacudindo” para não ficar na zona de conforto e esquecer minha vocação espiritual.

Este novo episódio de dor na minha mão me fez parar, orar e oferecer mais uma vez tudo que sou à Divina Mãe. Revisei meus objetivos, meu propósito na vida, meu compromisso espiritual e minha direção. Renovei minha energia e amor pelo caminho.

Agora compreendo que cada vez que algo acontece com minhas mãos é hora de deter-me, mergulhar no meu interior de forma mais intensa e profunda; me redescobrir. É hora de procurar no fundo do meu coração e trazer à superfície o amor divino que me define e transforma.

Agora eu sei que a Divina Mãe literalmente me tomou pelas mãos!

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